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Eleições no Brasil: Lula impõe derrota à extrema-direita

A vitória estreita do ex-presidente e veterano da esquerda brasileira representa o ápice de uma série de triunfos progressistas contra a extrema-direita na América Latina

A vitória do candidato de esquerda Luiz Inácio Lula das Silva, no segundo turno das eleições do Brasil, no último domingo, 30 de outubro de 2022, contra o incumbente de extrema-direita Jair Messias Bolsonaro, representa uma virada histórica no maior país da América do Sul, com uma população de 216 milhões de habitantes.

Em uníssono, um vasto suspiro de alívio ecoou entre comentaristas progressistas que cobriram as celebrações nas ruas de São Paulo e outras cidades do Brasil, mesmo após Bolsonaro apagar as luzes do palácio presidencial, incapaz de admitir sua derrota. O presidente de um mandato só “aparentemente se isolou no palácio, recusou-se a falar com ministros e foi dormir”, de acordo com as informações.

Bolsonaro talvez espere para ver se o resultado persiste. Após a votação, caminhoneiros de sua base de apoio obstruíram rodovias ao alegar que não aceitarão os resultados eleitorais.

Lula – sindicalista veterano que entrou na política no período da Ditadura Militar – foi preso em 2018 em um controverso processo por corrupção, mais tarde anulado, que culminou na queda de sua sucessora, Dilma Rousseff. A presidenta sofreu impeachment em 2016, sob um veredito denunciado por críticos e analistas como “golpe de estado” por meio de lawfare, sob conluios entre forças do Ministério Público e congressistas.

Lula, em Altos, Piauí, Outubro de 2017 [Ricardo Stuckert]

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Após dois anos na prisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou a condenação de Lula, em novembro de 2021, abrindo caminho a sua mais recente candidatura ao cargo máximo do país, aos 76 anos de idade. Três dias antes de vencer o pleito, Lula completou 77 anos.

Lula venceu sua primeira eleição à presidência em 2002 e rapidamente expandiu programas de assistência social a milhões de pessoas em condição de pobreza. Lula foi então reeleito em 2006 e conseguiu eleger sua sucessora, Dilma Rousseff, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quatro anos depois. Seu governo reduziu ainda o desmatamento da Amazônia, ao conter os avanços de madeireiros, garimpeiros e latifundiários – política revertida por Bolsonaro, cuja base abarca o agressivo agronegócio do interior do Brasil.

Em seu discurso de vitória a uma multidão em festa na Avenida Paulista, Lula prometeu acabar novamente com a fome, reduzir drasticamente a lista de espera por serviços médicos e retomar o programa de casas populares a milhões de brasileiros carentes. Comentou Lula: “Se somos o terceiro maior produtor mundial de alimentos e o primeiro de proteína animal … temos o dever de garantir que todo brasileiro possa tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias”.

Dada a vitória acirrada, com 51% dos votos para Lula contra 49% de seu adversário, as divisões nacionais parecem intactas, o que pode causar graves problemas ao novo governo. Como disse Ahmed Said Mourad, ex-deputado estadual por São Paulo, antes das eleições: “Não podemos ignorar o fato de que partidos alinhados a Bolsonaro, que tendem à direita, controlam a câmara legislativa, com 99 assentos, e o Senado, com treze. Isso fortalece seu movimento conservador, mesmo que ele não vença”.

 A esquerda varre o continente

A vitória de Lula no segundo turno das eleições presidenciais, no entanto, marca um ano e meio no qual a América Latina foi novamente varrida pela ascensão da esquerda, incluindo em países como Honduras, Chile e Colômbia. O mapa da região mostra a esquerda ou centro-esquerda no poder em todos os países, salvo alguns. 

A importância desta mudança é particularmente notável na Colômbia, onde 50 anos de guerra civil entre guerrilhas de esquerda e milícias de direita – alinhadas ao exército e treinadas pelos Estados Unidos – foram rematados apenas seis anos atrás. A violência não acabou. Centenas de ativistas e ex-guerrilheiros foram assassinados; alguns grupos – como o Exército de Libertação Nacional (ELN) – recusam-se a entregar suas armas.

Então, em junho de 2022, Gustavo Petro – ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá – venceu as eleições para a presidência. Tentativas prévias de uma vitória da esquerda no país foram todas afogadas em sangue. Ainda em junho, a Comissão da Verdade da Colômbia emitiu seu relatório exaustivo sobre o conflito. Entre 1985 e 2018 – os piores anos da guerra civil –, 450.664 pessoas foram mortas, 121.768 pessoas desapareceram (90% civis), em um índice de baixas semelhante à invasão do Iraque e à guerra na Síria. O presidente da comissão, Francisco de Roux, um padre jesuíta, descreveu a dor acumulada como insuportável.

Não obstante, após um levante popular em 2019 contra as políticas de austeridade do governo de ultradireita, uma janela enfim se abriu para permitir que Petro conquistasse sua vitória.

 A sombra do Tio Sam

As políticas de austeridade vivenciadas pela Europa nos últimos 15 anos tiveram como cobaia a América Latina das décadas de 1980 e 1990, à medida que o continente emergia de numerosas e violentas ditaduras. Um dos resultados dessas medidas foi o apagamento gradual de políticas moderadas e social-democratas, de modo a agravar a desigualdade e a pobreza e abrir caminho ao êxito de figuras de esquerda, muitas vezes, com discursos populistas.

Os Estados Unidos lutaram por 50 anos contra a esquerda na América Latina, política oriunda da Guerra Fria, cuja escalada tem como marco a revolução em Cuba. Contudo, ao transferir o foco a suas guerras no Oriente Médio e na Ásia Central, desde a década de 1990, os estados latino-americanos enfim deixaram a sombra do Tio Sam. De maneira semelhante à perda de Moscou de seus estados satélites – que abraçaram a União Europeia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o capitalismo – os Estados Unidos falharam em conter a ascensão da esquerda dentre os países da América Latina.

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A impressão de que Washington – quem sabe – aceite o socialismo via urnas é agora verossímil, ou ao menos reflete a incapacidade de sanções, golpes ou conspirações da CIA de impedirem a vontade popular. Todavia, restam indícios de que a Casa Branca apoia ações para desestabilizar governos de esquerda – não apenas em Cuba, Venezuela ou Nicarágua –, mas também figuras eleitas na mais recente “onda rosa”, incluindo Evo Morales na Bolívia, deposto em 2019, e Pedro Castillo no Peru, sindicalista sob forte campanha para removê-lo do cargo.

 O marasmo da Europa

Na era das redes sociais, a polarização política infectou todos os continentes; contudo, também converteu eventos em países aparentemente distantes, como o Brasil, em arautos majoritários das tendências de política doméstica na Europa e nos Estados Unidos.

Nas eleições de meio de mandato ao Capitólio, em novembro, a sustentabilidade em remendar continuamente as arestas no neoliberalismo parece enfrentar um teste existencial.

Apesar da queda nos padrões de vida e do aumento da desigualdade social nos Estados Unidos e na Europa, a democracia liberal mostrou certa ressurgência nos últimos anos, caso incluirmos a frágil presidência de Joe Biden, a insegura Alemanha do chanceler Olaf Scholz e a ascensão de governos de centro-esquerda em Portugal e Espanha. Em todo o mundo, entretanto, a extrema-direita deitou e rolou com a escalada no custo de vida, ao conquistar triunfos consideráveis na França e formar novos governos reacionários na Itália e na Suécia.

A ideia de remendar perpetuamente as arestas do neoliberalismo está em jogo nas eleições de meio de mandato dos Estados Unidos. Diferente do caso de Lula no Brasil, contudo, os eleitores americanos não parecem ter um horizonte de melhora – as promessas de aumentos no salário-mínimo permanecem estagnadas, entre outras propostas que poderiam galvanizar o eleitorado trabalhador do Partido Democrata.

O célebre cineasta e ativista Michael Moore, que anteviu a eleição de Donald Trump em 2016, quando muitos duvidavam, desafia o senso comum de que a direita republicana obterá ganhos acachapantes nas eleições da próxima semana. Com uma nação em choque com a revogação de direitos reprodutivos – representados pelo caso Roe vs. Wade – por parte da Suprema Corte, os democratas devem vencer, reafirma Moore. Em breve saberemos se ele tem razão.

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 Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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