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Meses difíceis à frente: Por que Israel tem medo da Toca dos Leões?

Grupo de resistência armada conhecido como Toca dos Leões, na cidade de Nablus, Cisjordânia ocupada, em 3 de setembro de 2022 [Lions' Den/Telegram]

A seguinte manchete publicada no jornal israelense The Jerusalem Post conta somente parte da história: “Toca dos Leões e outros grupos palestinos são uma eterna dor de cabeça para Israel e AP [Autoridade Palestina]”.

É verdade que ambos – Tel Aviv e Ramallah – guardam receios sobre a eventual propagação do fenômeno da insurreição armada na Cisjordânia ocupada, de modo que a mais recente brigada sediada em Nablus – a Toca dos Leões – tornou-se epicentro de um movimento comandado por jovens. Contudo, os avanços da resistência armada na Cisjordânia representam mais do que dor de cabeça às forças hegemônicas. Caso o fenômeno cresça ainda mais, é possível que ameace a própria existência da Autoridade Palestina e imponha a Israel sua escolha mais complexa desde a invasão de larga escala de cidades palestinas da Cisjordânia, em 2002.

Muito embora os comandantes militares da ocupação sionista busquem conter a capacidade de ação e influência do grupo recém-formado, parecem não ter a menor ideia de suas origens, sua influência e seu impacto no futuro próximo.

Em entrevista recente concedida ao jornal em hebraico Yedioth Ahronoth, o Ministro da Defesa de Israel Benny Gantz declarou que a Toca dos Leões é um “grupelho de trinta membros”, a ser ocasionalmente alcançado e exterminado. “Colocaremos nossas mãos nos terroristas”, advertiu Gantz. No entanto, a Toca dos Leões não é um caso isolado, mas parte de um fenômeno maior que abarca as Brigadas de Nablus, as Brigadas de Jenin e outras organizações espontâneas cujas raízes remetem sobretudo ao norte da Cisjordânia.

O grupo – junto de outras unidades militares palestinas – busca responder à execução sumária e sistêmica de seus concidadãos pelas mãos de Israel, dentre os quais, crianças, idosos, jornalistas e mesmo médicos, como Abdullah Abu al-Teen, que sucumbiu de seus ferimentos na cidade de Jenin, em 14 de outubro. Segundo o Ministério da Saúde da Autoridade Palestina, mais de 170 palestinos foram mortos na Cisjordânia e Faixa de Gaza desde janeiro deste ano.

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A reação palestina incluiu a morte de dois soldados sionistas: um em Shuafat, em 8 de outubro, e outro perto de Nablus, em 11 de outubro. Após o incidente em Shuafat, as forças israelenses selaram absolutamente o campo de refugiados local, como forma flagrante de punição coletiva, similar aos cercos militares contra Jenin e outras cidades palestinas.

Ao citar a imprensa em hebraico, o jornal palestino Al Quds reiterou que o exército da ocupação deve concentrar suas operações nas próximas semanas contra a Toca dos Leões. É provável que os comandantes israelenses enviem mais e mais soldados à Cisjordânia para travar sua batalha. Não obstante, é difícil imaginar tamanha mobilização militar por parte de Israel para combater apenas 30 rapazes palestinos na região de Nablus.

Todavia, não apenas Israel, mas também a Autoridade Palestina demonstra enorme apreensão. Sua liderança política tentou e fracassou em cooptar os novos combatentes ao lhes oferecer um “acordo” de rendição, segundo o qual baixariam suas armas e seriam fatalmente integrados aos serviços colaboracionistas de Ramallah. Concessões semelhantes foram propostas no passado a membros das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa – braço armado do Fatah –, com graus distintos de êxito e dissidência.

Desta vez, não funcionou. O grupo rejeitou os avanços da Autoridade Palestina, o que compeliu Ibrahim Ramadan, governador de Nablus filiado ao Fatah, a agredir as mães dos combatentes, ao descrevê-las como “degeneradas” por “levar seus filhos a cometer suicídio”. A linguagem de Ramadan, análoga à retórica adotada por figuras israelenses e sionistas ao retratar a sociedade palestina, reforça a vasta distância entre o discurso da Autoridade Palestina e a experiência em campo dos cidadãos nativos. Ramallah não apenas perdeu seu controle sobre a narrativa, como perde pouco a pouco qualquer vestígio de autoridade na Cisjordânia ocupada – sobretudo em Nablus e Jenin.

Um veterano do cenário político palestino confirmou à rede Media Line que as “ruas palestinas não mais confiam em nós”, pois “nos enxergam como extensão de Israel”. Verdade, porém, esta falta de confiança remete há muitos e muitos anos.

A “Intifada Unitária” de maio de 2021 serviu, contudo, de ponto de inflexão no relacionamento entre a Autoridade Palestina e seus concidadãos. O advento da Toca dos Leões e outros grupos armados são meramente uma manifestação das mudanças dramáticas em curso na Cisjordânia. De fato, os territórios ocupados estão em fase de transformação. Uma nova geração que possui pouca ou nenhuma lembrança da Segunda Intifada – entre 2000 e 2005 – não vivenciou a então ofensiva israelense, mas cresceu sob ocupação e apartheid, o que lhes compele às iniciativas de resistência em Jenin, Nablus e Hebron (Al-Khalil).

A julgar por seus símbolos e slogans, esta geração está farta das divisões superficiais e danosas que tomaram conta das facções palestinas. De fato, as novas brigadas – dentre as quais, a Toca dos Leões – parecem ser entes pluripartidários que reúnem, pela primeira vez, combatentes do Hamas, do Fatah e de outros grupos sobre uma única plataforma. Tamanha diversidade explica o entusiasmo popular e a falta de desconfiança entre os palestinos comuns no que concerne os novos combatentes.

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Por exemplo, Saed al-Kuni – combatente executado recentemente por soldados israelenses, em meio a uma emboscada na periferia de Nablus – era membro da Toca dos Leões. Alguns alegam que al-Kuni era uma figura de liderança nas forças do Fatah; outros afirmam se tratar de notório militante do Hamas. Esta incerteza sobre a identidade ideológica dos novos combatentes é algo razoavelmente único na sociedade nativa – ao menos desde a criação da Autoridade Palestina, em 1994.

Como todos esperamos, Israel fará o que sempre faz: aglomerar mais e mais tropas ocupantes, atacar, assassinar e esmagar manifestantes, e instituir novos cercos a cidades, aldeias e campos de refugiados. O que não conseguem entender – ao menos por ora – é que este sentimento de revolta, cada vez maior, não emanou de um grupelho de militantes em Nablus e outro punhado em Jenin, mas sim culmina de um verdadeiro sentimento popular.

Em entrevista ao Yedioth Ahronoth, traduzida ao árabe pelo jornal Al Quds, um comandante de Israel descreveu o que testemunhou em Jenin durante sua incursão militar: “Quando entramos em Jenin, tiros e pedras nos atingiram de todo canto. Todos tomaram parte. Você vê um senhor idoso e pensa: ele vai atirar pedras? Sim, ele vai. Uma vez, eu vi uma pessoa que não tinha nada nas mãos para atirar em nós. Ele correu a seu carro, pegou uma caixa de leite e jogou contra os soldados”.

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Os palestinos estão fartos da ocupação e do apartheid israelense, sob cooperação cotidiana da Autoridade Palestina. Os palestinos estão prontos para pôr tudo em jogo; em Nablus e Jenin, já o fizeram. As próximas semanas e os próximos meses são críticos para o futuro da Cisjordânia e, de fato, para o futuro do povo palestino.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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