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‘Rachel Corrie queria poder retornar a Gaza; de certo modo, nunca foi embora’, diz sua mãe

Da esquerda para a direita: Cynthia Corrie, seu marido Craig e o congressista democrata Brian Baird, ao lado de uma fotografia da ativista Rachel Corrie, filha do casal, em Washington DC, 19 de março de 2003 [Stefan Zaklin/Getty Images]

O assassinato de Rachel Corrie, cidadã americana de apenas 23 anos, em 16 de março de 2003, deflagrou um debate global sobre como Israel permanece impune com seu terrorismo de estado perpetrado contra civis e ativistas de direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. Dezenove anos depois, o regime ocupante ainda nega à família de Rachel qualquer sinal de justiça por sua execução sumária. Seus pais, Cindy e Craig, vêem-se agora no mesmo caminho de sua filha, ao tentar manter viva a causa palestina.

“Sabíamos a importância que Rachel dava a seu trabalho em Gaza”, explicou-me Cindy. “Ela conscientizou toda nossa família e comunidade local de uma maneira que nem a mídia nem ninguém jamais fez. E era importantíssimo que os relatos que ela nos transmitia em seus escritos e mensagens, sobre o que realmente acontecia ali, fossem compartilhados com outras pessoas”.

É por isso que Cindy e seu marido, com ajuda da comunidade local, lançaram a Fundação Rachel Corrie por Paz e Justiça, ainda em 2003, uma organização sem fins lucrativos cujo intuito é conceder apoio a mobilizações de base na busca por justiça social, econômica e ambiental. Há uma ênfase nos esforços para extinguir o atual regime de apartheid israelense.

“Definitivamente foi um esforço comunitário criar essa fundação, inspirado pelo apoio que recebemos de todo o mundo, quando Rachel foi assassinada, sobretudo aqueles que nos enviaram doações”’ prosseguiu Cindy.

Rachel vestia uma jaqueta laranja fluorescente bem na linha de visão de um trator blindado da ocupação israelense e tentava impedir a demolição de uma casa palestina; no entanto, foi atropelada e esmagada pelo veículo militar. Pouco antes, soldados israelenses dispararam bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e munição real para tentar aterrorizar os ativistas de solidariedade acampados no local.

A Palestina se lembra de Rachel Corrie [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Em 2012, uma corte distrital em Israel determinou que o estado não poderia ser responsabilizado pelo assassinato de Rachel Corrie. A decisão foi criticada imediatamente por grupos de direitos humanos locais e internacionais – incluindo Anistia Internacional, Human Rights Watch, B’Tselem e Yesh Din –, além do ex-embaixador americano em Israel, Daniel Shapiro. O diplomata ratificou a posição do Departamento de Estado, ao reafirmar que a investigação israelense sobre a morte de Rachel “não foi satisfatória tampouco tão franca, detalhada ou transparente quanto deveria ser”.

Até mesmo o ex-Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter descreveu o assassinato da ativista americana como inaceitável. “O veredito corrobora o clima de impunidade que facilita as violações de direitos humanos contra civis palestinos, cometidas por Israel nos territórios ocupados”.

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Rachel era voluntária do Movimento de Solidariedade Internacional (ISM), quando foi morta. Ativistas pró-Palestina estavam então engajados em ações diretas contra a ocupação militar israelense, sobretudo na Faixa de Gaza.

“Alguns dos amigos de Rachel viajaram a Gaza com o ISM no verão de 2002, o que atraiu sua atenção”, comentou Craig. “Ela estava aprendendo árabe com um professor palestino-americano nascido em Nazaré, além de receber monitoria de outras pessoas de nossa comunidade em Olympia conectadas ao assunto, dentre as quais, uma mulher israelense de família judaica. Portanto, Rachel obtinha perspectivas distintas ao aprender sobre a situação na Palestina”.

Craig observou que Rachel viajou à Palestina, em parte, porque se opunha à intervenção militar dos Estados Unidos no território iraquiano. Rachel anteviu uma escalada da agressão israelense contra a Faixa de Gaza, à medida que a atenção global permanecia voltada à guerra e ocupação no Iraque.

Em um de seus últimos e-mails a seus pais, encaminhado em 7 de fevereiro de 2003, escreveu Rachel: “Temos bastante dificuldade em obter notícias do restante do mundo, mas sabemos que uma escalada no Iraque é inevitável. Há enorme preocupação sobre uma reocupação de Gaza, mas Gaza volta a ser ocupada dia após dia, das mais diversas formas. No entanto, penso que o medo é de que tanques tomem as ruas e continuem por aqui, ao invés de apenas entrar e sair algumas horas ou dias depois, com intuito de monitorar e atacar as comunidades periféricas. Se ninguém estiver ainda pensando nas consequências dessa guerra para a região como um todo, espero que comecem”.

A guerra do Iraque começou oficialmente quatro dias após Rachel ser morta.

“Rachel engajou-se muito ativamente com grupos de ativistas que surgiram aqui em Olympia [sua cidade natal, no estado de Washington], após os ataques de 11 de setembro. Rachel permaneceu bastante envolvida com os grupos por paz e envolveu-se profundamentamente nos esforços para mobilizar sua comunidade de maneira criativa”, destacou Cindy. “Rachel também trabalhou com uma linha telefônica para tratar de emergências em nossa comunidade, durante seu ensino médio, e continuou a ajudar as pessoas por meio de seu trabalho assistencial na faculdade. Quando foi morta, alguns daqueles que receberam sua solidariedade vieram a eventos públicos e contactaram nossa família para falar de seus laços e suas experiências ao lado de Rachel, de como nossa filha estava construindo algo bonito”.

Para os pais, assim como para o restante da família, Rachel sempre foi notável. Desde criança, Rachel se embrenhava em sua escrita criativa, seu conhecimento por fatos únicos e seus questionamentos filosóficos. “Ela tinha uma maneira bem própria de nos chocar algumas vezes, de nos surpreender com suas reflexões profundas. Uma vez, Rachel me perguntou: ‘Ter coragem faz parte de crescer?’ Ela era muito novinha naquela ocasião”, recordou sua mãe.

Aos dez anos de idade, Rachel já tinha consciência social e foi oradora de sua turma durante uma coletiva de imprensa na qual reivindicou da comunidade internacional o combate verdadeiro à pobreza. O evento foi parte de uma atividade escolar cujo intuito era conscientizar a comunidade sobre a fome no mundo. Em seu discurso, no entanto, a pequena Rachel articulou: “Eles são nós, nós somos eles. Eles sonham nossos sonhos e nós sonhamos os deles”. A surpreendente sentença da menina de dez anos foi levada pelo restante de sua vida e culminou em sua viagem à Palestina, onde tragicamente foi assassinada.

Sua escrita obteve ainda maior significado após sua morte. De acordo com seu pai, seus textos são capazes de fornecer maneiras de ver e ordenar não apenas nosso mundo cotidiano, mas também universos que pouco conhecemos. “Quando Rachel viajou a Gaza, sabíamos quão importante eram suas palavras para ela, quão cuidadosa ela era em escolhê-las, como observava tudo que acontecia ao seu redor para tentar transmitir em seus relatos”, destacou Cindy. “Seus escritos desafiaram a própria narrativa da grande imprensa americana, pois tínhamos pouquíssima compreensão e consciência da questão palestina até que nossa filha começou a compartilhar conosco seus relatos em campo. Suas palavras de Gaza nos impactaram bastante, antes de sua morte. Na ocasião, perguntei a seu irmão, que morava em Washington DC: ‘O que você acha do que Rachel nos diz sobre a Faixa de Gaza?’. Ele me respondeu: ‘É uma perspectiva de que nunca ouvi falar’”.

Ao divulgar seus emails de Gaza dias após sua morte, a família de Rachel recebeu uma surpreendente notícia de Londres, diretamente do Royal Court Theatre. O agora falecido ator Alan Rickman, conhecido por seu papel como Severus Snape na franquia Harry Potter, contactou o teatro em março de 2003 após ler as mensagens de Rachel publicadas pelo jornal britânico The Guardian. Rickman e sua coeditora Katharine Viner construíram uma peça baseada nos escritos e na vida da jovem ativista, intitulada My Name is Rachel Corrie – iniciativa que ajudou a propagar suas palavras por todo o mundo.

“Rachel sentia um enorme senso de compromisso para com Gaza. Ela dizia que queria ter certeza que poderia sempre voltar, uma vez que deixasse a região. De certo modo, nunca foi embora”, concluiu Cindy. “O compromisso de Rachel desde então nos guia a manter seu senso de responsabilidade tanto quanto possível. Muitas pessoas de todo o mundo e de diversos campos de estudo e militância, que acreditam na paz e na justiça para todos, se juntaram a seu chamado. É isso que Rachel gostaria que fosse feito”.

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