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Restaurar laços com o regime sírio põe o Hamas entre a cruz e a espada

Yahya Sinwar, chefe do Hamas em Gaza, durante jantar do Ramadã, na Cidade de Gaza, 30 de abril de 2022 [Ali Jadallah/Agência- Anadolu]

Dez anos após deixar a Síria, em meio à violenta repressão do regime de Bashar al-Assad contra protestos populares por democracia, o movimento palestino Hamas aparentemente decidiu restaurar laços com Damasco. Embora não haja ainda qualquer declaração oficial sobre a matéria, alguns vazamentos anônimos foram reportados pela imprensa.

“Um avanço substancial ocorreu recentemente no que se refere ao relacionamento entre Hamas e Damasco”, declarou uma fonte. “Houve um acordo para reabrir os canais de comunicação direta entre as partes e adotar um diálogo sério e construtivo capaz de culminar na retomada das relações mútuas”.

Segundo um documento ao qual tive acesso através de uma fonte interna, o Hamas decidiu “restaurar laços com a Síria de modo a servir suas perspectivas políticas e robustecer o programa de resistência, além de contribuir com a formação de uma frente contraposta aos esforços de normalização, que buscam liquidar a causa palestina”.

Khalil al-Haya – chefe do Escritório de Relações Árabes e Islâmicas do movimento de resistência – comentou os rumores: “Houve discussões em âmbito doméstico e no exterior sobre a restauração de relações com a Síria; foi acordado buscar maneiras de fazê-lo”.

Oficiais sírios não comentaram os relatos até então, mas o avanço potencial já foi comemorado por Teerã – suposto mediador entre as partes –, assim como pelo grupo libanês Hezbollah, aliado regional de Bashar al-Assad. A questão é: por qual razão o Hamas decidiu agora restabelecer relações com o governo em Damasco?

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É evidente que a oposição síria está descontente com a decisão. Contudo, a liderança do Hamas insistiu crer que a normalização será oportuna aos refugiados na Síria, ao reaver sua participação nos esforços da resistência palestina. Alguns políticos defendem a medida como forma de recuperar o assento do Hamas no “eixo de resistência”, ao robustecer a posição contrária à normalização promovida por regimes árabes com a ocupação israelense.

Na minha opinião, o Hamas resolveu restaurar laços com Assad sob enorme pressão do Irã e reiterados apelos da Rússia. Teerã espera que um bom relacionamento sirva a Assad para angariar apoio entre muçulmanos sunitas tradicionalmente simpáticos ao movimento palestino, principalmente nos estados árabes. Moscou quer aproximar-se do lado palestino para contrapor o suposto apoio israelense à resistência ucraniana no Leste Europeu.

É marcante que líderes do Hamas tenham conduzido diversas viagens à capital russa nos últimos meses. A aproximação com o Kremlin, naturalmente, tem um preço. Um relacionamento forte com a Rússia consolida a posição internacional do movimento, mas demanda que seus líderes estejam dispostos a capitular a algumas das condições estabelecidas por Vladimir Putin. Sob essa lógica, a única coisa que o Hamas pode fazer no momento é restaurar laços com o regime em Damasco.

O Hamas monitora agora a resposta dos governos árabes sobre a questão síria e sua relação com Assad. O movimento de resistência não pode arcar com uma política radicalmente divergente dos estados regionais, de modo que a reabertura de laços – formal ou informalmente – entre diversas capitais e Damasco parece uma medida absolutamente pragmática para a liderança do Hamas. Ministros de Relações Exteriores dos estados-membros também discutiram o retorno da Síria à Liga Árabe, em sua mais recente reunião de cúpula, realizada em março. Com Damasco suspenso da entidade há mais de uma década, seu secretário-geral Ahmed Aboul Gheit afirmou que a decisão deveria ser tomada de maneira “bilateral” entre os estados árabes, caso exista um “consenso” sobre o retorno.

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É isso – imagino – que levou o Hamas a mudar de posição apesar da evidente oposição de seus apoiadores em casa e no exterior. Os diversos membros do movimento palestino e seus simpatizantes com quem conversei condenaram, no entanto, a medida. Há uma indignação palpável sobre os esforços do movimento para restaurar relações com Assad.

Uma das fontes reiterou que as forças de Assad mataram cerca de 300 mil sírios e palestinos no decorrer da guerra. “Como o Hamas mostrará sua cara à população síria e aos refugiados palestinos agora?”, questionou a fonte.

O conhecido jornalista Yasser Zaatra insistiu que continuará a apoiar a resistência palestina, não importa a facção que a represente. “Contudo, não aceitaremos a normalização com o regime, que derramou sangue de centenas de milhares de nossos irmãos sírios e deslocou outras centenas de milhares”.

Tamanha reação em campo sugere que o Hamas foi pego entre a cruz e a espada. O que fará então de agora em diante?

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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