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A Grande Fome está chegando: O mundo tem de preparar-se para ela

Fazendeiros inspecionam produção de trigo no Delta do Nilo, Egito, em 25 de março de 2022 [Stringer/Agência Anadolu]

À medida que o mundo sofreu problemas no abastecimento global nos últimos dois anos, em virtude da persistente pandemia de coronavírus, os mercados enfrentaram consequências drásticas, as economias encolheram e novos temores emergiram sobre a iminente escassez de produtos básicos – sobretudo alimentos.

Tais previsões afinal se materializaram com a invasão russa na Ucrânia, com impacto severo na colheita de trigo e outras commodities essenciais produzidas na região. A chamada “cesta de pães da Europa” não apenas alimenta dezenas de milhões de pessoas nos países vizinhos, como outras centenas de milhões em todo o planeta.

O resultado é quase apocalíptico. Dados do Programa Alimentar Mundial (PAM), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), calculam que aproximadamente 890 milhões de pessoas em âmbito mundial carecem de calorias suficientes para a subsistência. O número, contudo, aumenta exponencialmente e acumula centenas de milhões acima de 2020.

Como disse o bilionário e astrofísico David Friedberg, em um vídeo que viralizou online, a rede de produção alimentar do planeta opera em um ciclo de somente 90 dias, dependendo constantemente de seu reabastecimento. Com o consumo e a exportação do ciclo anterior, qualquer atraso ou obstrução no processo projeta impactos gravíssimos no volume de commodities disponíveis às populações carentes. Em suma, a humanidade esgota suas reservas alimentares em questão de três meses.

Para colocar a situação em perspectiva, a temporada de trigo começou há semanas, entre o fim de março e o começo de abril. Em virtude da guerra na Ucrânia, a produção caiu abaixo do adequado e a catástrofe deve estender da primavera ao verão e ainda além.

Dessa maneira, os impactos graves devem ser notórios nos próximos meses. Quando cerca de 30% do abastecimento de trigo em âmbito global – e 15% das calorias consumidas – é subitamente cortado do fluxo de exportação, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar e fome aproxima-se cada vez mais da escala de bilhões.

Crise fabricada pelo homem?

 Como quase toda pauta que pertence ao campo da subsistência humana, a crise alimentar global tornou-se matéria política. Embora a agressão da Rússia seja frequentemente interpretada como responsável pelo impacto na produção e exportação de trigo e produtos básicos, há outros fatores a serem analisados como eventual raiz do problema.

Muitos grupos políticos – em particular, na Europa e nos Estados Unidos – mencionam uma série de problemas de abastecimento causados pelas restrições do coronavírus, além da escassez de fertilizantes agrários e suposto acúmulo abusivo nos estoques de alguns países – como deve ocorrer na China para insumos de arroz e trigo, ao longo deste ano.

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Teorias sobre os responsáveis pela crise alimentar global costumam ir além, ao afirmar que enormes latifúndios nos Estados Unidos foram comprados por figuras como Bill Gates e outros bilionários. Críticos do monopólio privado das terras agrárias apontam receios de que tais políticas possam resultar na menor capacidade de produção de alimentos, em favor da criação de gado para controlar e aumento o custo da carne ao indivíduo médio.

Outros críticos denunciam equívocos do governo estadunidense, sobretudo no último ano, que devem contribuir para a escassez global, incluindo ao autorizar a destruição de colheitas durante a pandemia, além de um programa recente do governo de Joe Biden para incentivar fazendeiros beneficiados por subsídios a suspender sua produção em certas áreas sob o pretexto de reduzir as emissões de carbono.

Tamanho revés agrário, coadunado com práticas de monopólio e latifúndio, não são exclusividade dos Estados Unidos, mas são notórios em todo o planeta. Estima-se que apenas quatro corporações possuam mais de 50% das reservas mundiais de sementes. Além disso, políticas e legislações implementadas sob o jugo da Organização Mundial do Comércio (OMC) e seus estados-membros supostamente impediram fazendeiros de produzir e negociar livremente, em franco benefício das grandes corporações.

A própria ONU chegou a reconhecer tais apreensões, ao declarar em um relatório de treze anos atrás que a “estrutura de oligopólios no mercado de provedores de alimentos pode privar fazendeiros mais pobres do acesso a recursos produtivos essenciais a sua subsistência, além de potencialmente aumentar os preços de produtos alimentares e reduzir o acesso de tais commodities às populações carentes”.

A carestia de bens alimentares e a queda no poder de compra em escala internacional não são, portanto, somente resultado da ofensiva russa na Ucrânia ou das mudanças climáticas – incluindo secas cada vez mais contundentes e regulares. Ao contrário, tais crises decorrem do monopólio corporativista multinacional, políticas desastrosas e restrições à produção e exportação de bens. Tais fatos foram reconhecidos por um relatório divulgado em abril pelo Serviço de Agricultura Externa dos Estados Unidos (FAS).

Não importa se acreditamos que o problema é resultado de conspirações motivadas pelo lucro para projetar escassez alimentar – como vimos diversas vezes ao longo da história humana, incluindo ao menos 31 vezes na Índia sob o domínio britânico e interesses particulares. Tampouco importa se adotamos a hipótese de uma série de eventos incidentais. O fato é que a crise global de alimentos deve atingir seu ápice em breve e causar fome generalizada em diversos países até o fim de 2022 e no decorrer do próximo ano.

O impacto mais severo e imediato será evidentemente vivenciado pelo “terceiro mundo” e por países em desenvolvimento, nos quais governos possuem capacidade limitada de estocar recursos, incluindo trigo e outras commodities vulneráveis ao colapso econômico. O Sul da Ásia, o Oriente Médio, a América do Sul e Central devem sofrer os maiores impactos, como já podemos ver em territórios como Iêmen, Afeganistão, Somália, Egito, Síria, Líbano e Palestina.

Enquanto isso, estados do “primeiro mundo” devem ser privilegiados novamente, ao manobrar a compra de produtos essenciais para estocá-los no longo e doloroso inverno. Há indícios de que tais países estejam até mesmo canalizando as remessas de commodities a destinos específicos, em prejuízo de áreas em desenvolvimento. A suposta prática foi recentemente denunciada pelo Ministro do Comércio do Kuwait, Fahd al-Shariaan: “Embarcações carregadas com insumos de trigo, grãos e sementes, com destino a Kuwait, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Catar, Bahrein e Omã, foram desviadas em alto-mar à Europa”. Al-Shariaan alertou ainda as populações do Golfo devem esperar uma nova carestia, ao descrever a situação internacional e regional como “gravíssima” e prever a iminência da fome.

Quando o colapso alimentar atingir esses países – sobretudo economias mais frágeis assoladas por sucessivas crises –, haverá resultados previsíveis e catastróficos. A depender de quão rapidamente os governos possam se preparar, um dos primeiros impactos será a instabilidade sociopolítica causada pela fome generalizada nos respectivos países. Protestos já se deflagraram no Sri Lanka, nas últimas semanas, que culminaram em brutal repressão policial e no assassinato recente de um manifestante. Tais insurreições populares devem ressoar a Primavera Árabe, como ocorreu no Oriente Médio e Norte da África há cerca de uma década, cuja causa primária foi justamente a inflação dos alimentos – principalmente o pão.

As repercussões de tais levantes são imprevisíveis, mas é comum que tamanha instabilidade socioeconômica leve governos subdesenvolvidos a solicitar novos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) para manter sua flutuação. No entanto, as condições predatórias da dívida externa – que já assola a vasta maioria dos países emergentes – deve somente aprofundar a dependência financeira das comunidades vulneráveis. Com a fome generalizada em potencial, além da iminência de novas revoluções e colapsos fiscais, o destino do “terceiro mundo” permanece obscuro.

Os efeitos deverão reverberar sim no “primeiro mundo”, por meio de um novo surto de refugiados às nações ocidentais. Se os regimes europeus tanto se afligiram pela crise migratória proveniente da Síria, equivalente a milhões de pessoas, devem agora preparar-se a uma situação muito maior: na escala de dezenas de milhões de novos refugiados.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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