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Ao reformular a UNRWA, Washington destrói os alicerces de uma paz justa na Palestina

Escola da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) na Cidade de Gaza, em 29 de novembro de 2021 [Mohammed Abed/AFP via Getty Images]

Os palestinos estão apreensivos com razão de que o mandato da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) possa chegar ao fim no futuro próximo. As operações da UNRWA, em vigor desde 1949, fizeram muito mais do que conceder ajuda urgente a milhões de refugiados. Trata-se de uma plataforma política que preservou os direitos de gerações e gerações de palestinos deslocados.

Embora a UNRWA não tenha sido estabelecida como plataforma legal ou política por definição, o contexto de seu mandato é amplamente político, dado que os palestinos se tornaram refugiados como resultado de eventos militares – isto é, da limpeza étnica da população nativa por forças sionistas e da recusa de Israel em respeitar o direito de retorno, consagrado pela Resolução 194 (III) das Nações Unidas, de 11 de dezembro de 1948.

Dia da Nakba 1948 – charge [Latuff / Monitor do Oriente Médio]

A UNRWA possui um mandato humanitário e de desenvolvimento para fornecer assistência e proteção a refugiados palestinos que aguardam uma solução justa e duradoura a seu sofrimento”, declarou a resolução 302 (IV) da Assembleia Geral da ONU, aprovada em 8 de dezembro de 1949. Lamentavelmente, nem uma “solução duradoura” à questão dos refugiados tampouco um horizonte político jamais foram alcançados. Ao contrário de adotar este enunciado como forma de reavaliar o fracasso da comunidade internacional em garantir justiça aos palestinos e responsabilizar Israel e seus apoiadores nos Estados Unidos, uma campanha punitiva se impôs à UNRWA e, por extensão, aos refugiados vulneráveis nos últimos anos.

Em um alerta aterrador de 24 de abril, Saleh Nasser, chefe do comitê político do Conselho Nacional Palestino (CNP), confirmou a possibilidade do mandato da UNRWA não ser renovado. Para tanto, Nasser citou um comentário recente de Philippe Lazzarini, comissário-geral da agência das Nações Unidas, sobre o futuro da organização.

A declaração de Lazzarini deixou espaço a interpretação, embora tenha deixado claro que algo referente ao mandato e trabalho da UNRWA está prestes a mudar. “Podemos admitir que a situação atual é insustentável e resultará inevitavelmente na erosão qualitativa dos serviços da UNRWA ou, ainda pior, sua interrupção”, afirmou Lazzarini.

Nasser descreveu tais palavras como “prelúdio do fim das doações À UNRWA”.

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O futuro da agência parece agora uma prioridade não somente entre o discurso político palestino, mas árabe como um todo. Qualquer tentativa de revogar ou reformular a missão da UNRWA representa uma ameaça sem precedentes ao povo palestino. A UNRWA providencia apoio de educação, saúde e outros serviços fundamentais a 5.6 milhões de refugiados em Jerusalém Oriental, Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbia e Síria. Com orçamento anual de US$1.6 bilhão, tamanha rede assistencial não pode ser facilmente substituída.

De igual importância é a natureza política da organização. A própria existência da UNRWA significa que há uma questão política a ser abordada sobre a situação e o futuro dos refugiados palestinos. De fato, não foi somente a suposta falta de entusiasmo para financiá-la que culminou na crise em curso: trata-se de algo muito além e muito mais sinistro.

Em junho de 2018, Jared Kushner, genro e assessor do Presidente dos Estados Unidos Donald Trump, visitou Amã, capital da Jordânia, para tentar convencer o Rei Abdullah a remover o status de refugiado de dois milhões de palestinos radicados no país. Tais esforços fracassaram. Em setembro de 2018, no entanto, Washington decidiu suspender seu apoio financeiro à UNRWA. Como principal doador da agência, a determinação foi devastadora, dado que 30% dos recursos da agência eram oriundos dos Estados Unidos. Todavia, a UNRWA sobreviveu ao solicitar maior apoio do setor privado e de doações individuais.

Decisão dos EUA de cortar o financiamento da UNRWA. [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Decisão dos EUA de cortar o financiamento da UNRWA. [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Embora a liderança palestina tenha celebrado a decisão de Joe Biden de retomar o envio de recursos à UNRWA, a partir de 7 de abril de 2021, um revés considerável foi mantido nos bastidores. Washington aceitou financiar novamente a agência após esta assinar um programa de dois anos, então conhecido como Quadro de Cooperação. Em essência, este plano efetivamente transformou a UNRWA em uma plataforma para estabelecer políticas de Israel e Estados Unidos em território palestino, de modo que a entidade das Nações Unidas capitulou a demandas da ocupação para assegurar a exclusão de refugiados supostamente vinculados ao “exército de libertação da Palestina” ou organizações “engajadas em atos terroristas”. Ademais, o programa prevê que agência monitore o “conteúdo” da grade curricular palestina.

Ao acatar aos arbítrios do Departamento de Estado dos Estados Unidos, a UNRWA “converteu-se de agência humanitária que fornece assistência aos refugiados palestinos a ente de segurança que aprofunda a agenda política e militar dos Estados Unidos e Israel”, reafirmou o Centro de Pesquisa BADIL para os Direitos dos Refugiados Palestinos.

Os protestos palestinos, no entanto, não mudaram a nova realidade estabelecida, que alterou todo o mandato conferido à UNRWA há quase 73 anos. Pior ainda, os governos europeus seguiram a deixa em setembro último, quando o parlamento do bloco aprovou uma emenda que condicionaria seu apoio à UNRWA a editar e reescrever textos didáticos palestinos, acusados de “incitar a violência” contra Israel – isto é, o estado ocupante.

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Ao contrário de concentrar-se em fechar a UNRWA de imediato, Washington, Tel Aviv e seus aliados trabalham para alterar sua natureza e reformular seu mandato original. A mesma agência estabelecida para proteger os direitos dos refugiados foi incumbida agora de defender os interesses ocidentais na Palestina histórica. Embora a existência da UNRWA jamais tenha sido ideal, suas operações socorreram milhões de cidadãos palestinos ao longo dos anos, ao preservar a natureza política da questão dos refugiados.

A Autoridade Palestina (AP), assim como facções políticas nacionais, governos árabes e outros, protestaram contra os desígnios israelo-americanos sobre a UNRWA, mas este repúdio dificilmente fará diferença, considerando que a própria agência cedeu a pressões externas. Enquanto palestinos e seus aliados continuam a lutar pela missão original da agência, é preciso ainda desenvolver alternativas para proteger os refugiados e seu direito de retorno do ostracismo e, eventualmente, do esquecimento.

Caso os refugiados palestinos sejam retirados das prioridades concernentes ao horizonte político da Palestina histórica, nem paz nem justiça serão alcançadas na região.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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