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Cobertura de guerra: Quando a discriminação vem à tona

Imigrantes ucranianos protestam em frente ao Consulado-Geral da Rússia em Antália, Turquia, 1° de março de 2022 [Mustafa Çiftçi/Agência Anadolu]

As guerras soterram muitas coisas; outras, porém, vêm à tona. Após deflagrar-se a guerra, em 23 de fevereiro, com a invasão russa à Ucrânia, diversos comentários de correspondentes internacionais revelaram um racismo ainda presente no século XXI, ao sugerir que as vítimas podem ser “dignas” ou não da violência, com base em sua etnia, cor dos olhos ou dos cabelos.

Reportar a dor dos ucranianos, evidentemente, é a prioridade máxima, mas a cobertura não deveria ser apresentada ao público com tamanha discriminação. Por exemplo, as declarações de David Sulakvelidze, ex-procurador-geral da Ucrânia, à rede de televisão britânica BBC, na qual comparou o conflito com as pessoas no Iraque e Afeganistão, ao descrever a Ucrânia como “civilizada”. Afirmou Sulakvelidze: “É tudo muito comovente para mim porque eu vejo europeus, com olhos azuis e cabelos louros, sendo mortos pelos mísseis e foguetes de Putin”.

Dois pesos e duas medidas: Uma longa história

Outro exemplo foi um jornalista da rede CNBC: “Estes não são refugiados da Síria, são refugiados da vizinha Ucrânia … são cristãos, são brancos, se parecem conosco”.

Tamanha discriminação, até então oculta, subitamente veio à luz, mas não nos esqueçamos que há uma longa história por trás dessa abordagem de dois pesos e duas medidas.

Darwin, por exemplo, acreditava que a evolução era um fenômeno contínuo e que as raças brancas eram mais evoluídas. Esse raciocínio equivocado foi adotado então pelo Ocidente para justificar a escravidão. Herbert Spencer, antropólogo que cunhou o termo “sobrevivência do mais forte”, utilizou a teoria de Darwin para argumentar que as sociedades humanas operam de maneira similar às cadeias evolutivas das espécies, conforme o princípio da seleção natural. Com efeito, aqueles que são fracos ou incapazes de se adaptar não teriam espaço nessa competição. Perspectivas falaciosas justificaram guerras raciais: “Aqueles mais poderosos ou mais adaptados passam por cima dos mais fracos, empurrando as espécies inferiores a habitats indesejáveis e, ocasionalmente, ao seu extermínio”.

Cobertura da crise de refugiados na Ucrânia é ‘racista’ – Charge [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Discurso ‘civilizado’

William Graham Sumner, considerado o primeiro antropólogo dos Estados Unidos, também adotou pressupostos darwinistas, ao seguir os passos de Spencer. Sumner alegou que a escravidão deu a certas populações a liberdade para criar e desenvolver culturas mais sofistificadas; favorecendo, dessa maneira, toda a humanidade. Seu ponto de vista sobre as classes sociais americanas representaria, portanto, uma ordem natural.

Décadas mais tarde, testemunhamos essa mesma segregação no mundo moderno. A imprensa ocidental continua a dar espaço a expressões de supremacia branca. Por exemplo, Charlie D’Agata, o principal correspondente de política externa da CBS News, declarou: “A Ucrânia não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, assolados há décadas por conflitos. É um lugar relativamente civilizado, relativamente europeu — e escolho as palavras com muito cuidado —, onde ninguém esperaria que algo assim acontecesse”.

De modo bastante semelhante, à medida que o público assistia vídeos de civis ucranianos preparando coquetéis molotov em canais de notícias, com detalhes para fabricá-los ou torná-los mais eficientes, Lucy Watson, correspondente da rede ITV, assumiu uma retórica também racista: “O impensável aconteceu. Esta não é uma nação de terceiro mundo; esta é a Europa”.

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Além disso, países da Europa Central estão assegurando salvo-conduto a civis ucranianos em direção à Polônia, ao lhes fornecer comida, abrigo e serviços médicos para processar adequadamente o fluxo de refugiados. Questionado sobre os novos imigrantes, observou o premiê bulgáro: “Estes não são os refugiados aos quais estamos acostumados. Eles são europeus e nós, como qualquer país da União Europeia, estamos prontos para acolhê-los. Eles são pessoas educadas, pessoas inteligentes … alguns são especialistas em tecnologia da informação, altamente qualificados. Em outras palavras, não é a mesma onda de refugiados à qual estamos acostumados, pessoas com quem não sabíamos lidar, pessoas com passado obscuro, até mesmo terroristas”.

Racialização tem consequências

A racialização da miséria tem consequências. Enquanto as portas se abriram aos cidadãos ucranianos, fontes constataram que centenas de estudantes africanos, até então radicados no país, foram impedidos de embarcar nos trens para atravessar a fronteira com segurança.

Os comentários supramencionados, compartilhados com milhões de telespectadores, demonstram que, apesar da emergência de uma suposta cultura de tolerância e consciência racial, ao longo da última década, a discriminação permaneceu inabalada. Cada ato falho freudiano que comparam a situação na Ucrânia com “outros” conflitos em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento meramente manifestam uma discriminação histórica, porém internalizada, cuja justificativa repousa sobre a pseudociência e a ignorância. Por meio de declarações como essas, somos coagidos a crer que pessoas não-brancas merecem naturalmente as atrocidades enfrentadas, porque são menos dignas de viver.

Não há nada civilizado na guerra. Ninguém merece ser expulso de suas terras; ninguém merece morrer por causa de um conflito político que nada tem a ver com os interesses civis. O que acontece na Ucrânia é absolutamente trágico; contudo, acontece como resultado do fracasso da comunidade internacional em agir sobre crises que se alastraram por todo o mundo — sobretudo pela incapacidade de chegarmos a um “denominador comum”.

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Governantes e figuras públicas devem reconhecer a iminência da guerra como algo bastante comum em nosso futuro, a menos que todos sejam tratados com igualdade e justiça, independente da cor, etnia, idade, gênero ou religião.

Artigo publicado originalmente pela agência Anadolu.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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