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O massacre dos 43 estudantes de Ayotzinapa e a luta por justiça

Manifestação durante visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à escola Escuela Rural Normal de Ayotzinapa, en Iguala, Estado de Guerrero em 29 de setembro de 2015, um ano após o massacre dos estudantes de Ayotzinapa [Daniel Cima/CIDH]

“Vivos os levaram! Vivos os queremos!” Essas palavras de ordem a partir do México ecoaram em todo o globo após o desaparecimento no dia 26 de setembro de 2014 de 43 estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos de Ayotzinapa, pequeno município do Estado de Guerrero. No dia em que se lembra esse crime bárbaro que chocou o mundo, pais, familiares, professores e amigos das vítimas ainda lutam pelo direito de enterrar seus entes queridos – apenas três corpos foram localizados até agora. Na luta por justiça, o Estado de Israel é um obstáculo ao avanço das investigações.

O que: Massacre dos 43 estudantes de Ayotzinapa

Quando: 26 de setembro de 2014

Onde: Ayotzinapa, México

O que aconteceu

Com o objetivo de participarem de um protesto anual na Cidade do México no dia 2 de outubro – em memória ao histórico massacre de Tlateloco, em que centenas de manifestantes foram assassinados em 1968 –, há sete anos, cerca de cem estudantes seguiram em excursão a partir de Ayotzinapa. Não poderiam imaginar que parte deles seria vítima de mais um massacre cometido no país pelas forças de repressão do então governo de Enrique Peña Neto (2012-2018).

Marcha cobra respostas para o desaparecimento dos 43 estudantes em 26 de dezembro de 2014 [Maurício Garcia/Flick]

A viagem dos jovens tinha como destino a cidade de Iguala, a pouco mais de duas horas dali, onde pretendiam então pegar ônibus para chegarem à capital do país. O relato do que se sucedeu consta de matéria especial para o portal de notícias Ponte Jornalismo também num 26 de setembro, cinco anos depois.

Os cinco ônibus tomados pelos jovens – uma tradição no país sempre no período e pela mesma motivação – foram alvejados por patrulhas policiais. Seis pessoas morreram e 43 desapareceram.

Omar Garcia, estudante da Normal Rural, descreveu à Ponte o terror que presenciou: “Eu sou um dos sobreviventes e sou testemunha, junto com os outros sobreviventes, que a polícia levou os meus companheiros. E também vi o exército mexicano naquela noite patrulhando e perseguindo estudantes. Houve muitos feridos, inclusive meu amigo Edgar, que foi ferido a bala. Atiraram na cara dele e toda a parte da sua boca se desprendeu. E durante todo aquele caos, levando feridos com a gente, a polícia nos perseguia e seguia disparando.”

Protestos gigantescos e greves eclodiram desde então no México. Professores carregavam cartazes com os dizeres: “Não posso dar aula, faltam 43. Não quero que amanhã falte você.”

A investigação

A condução da investigação revelou uma intrincada trama que buscava isentar as forças de repressão mexicanas e culpar as vítimas. Um dos argumentos era de que integravam um cartel do narcotráfico rival à gangue Guerreros Unidos. Por essa razão teriam sido mortos por estes últimos.

Ante as testemunhas que falavam da ação das patrulhas policiais, tentaram jogar a responsabilidade exclusivamente sobre a repressão e administração de Iguala, dizendo que teriam entregue os jovens aos Guerreros. Visavam, assim, encobrir o fato de que a ofensiva fora coordenada pelos agentes municipais, estadual e exército mexicano, ao encontro dos interesses dos empresários dos ônibus tomados pelos estudantes.

Para que a versão oficial não fosse desmentida, testemunhas eram ameaçadas e intimidadas, e depoimentos foram obtidos sob tortura durante a investigação. A trama contou ainda com falsificações sobre o local do crime, o que impediu durante muito tempo que outras áreas fossem verificadas, até que restos mortais do terceiro jovem identificado fossem encontrados.

Segundo a entrevista de Garcia, até 2019, com o governo atual – do presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) –, as investigações ainda não haviam avançado muito, embora houvesse “bons sinais”. Entre eles, a emissão de um decreto presidencial para que todas as autoridades do país contribuíssem e instituição de uma comissão de investigação, além do retorno de especialistas internacionais para ajudarem a desvendar o caso.

O que Israel tem a ver com isso

Durante o governo Peña Neto, a investigação foi comandada pelo ex-diretor da Agência de Investigação Criminal (AIC) Tomás Zerón, que se manteve no cargo até 2016, quando evidências começaram a aparecer quanto à condução com o objetivo de acobertar todos os responsáveis pelo crime de Ayotzinapa em 2014.

Ao ser apontado como um dos torturadores, denunciado por mau uso do dinheiro público e corrupção no ano passado, ele fugiu para o Canadá e de lá buscou asilo em Israel, que vem atrasando o atendimento ao pedido de extradição feito pelo governo mexicano para que seja possível avançar nas investigações. O país latino-americano não tem tratado de extradição com Israel. Um dos apelos feitos por AMLO é um escárnio: respeito aos direitos humanos, algo que definitivamente vai de encontro ao racismo e limpeza étnica a que estão submetidos os palestinos na contínua colonização sionista há mais de 73 anos, bem como ao histórico de Israel de apoiar regimes ditatoriais na América Latina.

Embora tenha se especulado que o Estado sionista estivesse postergando a extradição como punição ao México por ter votado na Organização das Nações Unidas (ONU) a favor dos palestinos, a real justificativa é apontada por Dolores Guerra em relatório escrito para o Monitor do Oriente e publicado no dia 23 de agosto último: o envolvimento de Zerón nas negociatas que resultaram na compra pelo México de tecnologias de vigilância israelenses para equipar todas as forças de repressão estatais.

LEIA: O cliente da NSO escondido em Israel e os 43 estudantes de Ayotzinapa

Dolores Guerra informa que, sob a direção de Zerón, a Procuradoria-Geral da República do México assinou seu primeiro contrato por US$ 32 milhões com a NSO Group, desenvolvedora do software espião israelense Pegasus. O valor, segundo relatado, era muito superior ao negociado antes com a italiana Hacking Team, que já fornecia tal tecnologia. Para manter seus negócios com o governo mexicano, destaca Dolores Guerra, essa empresa buscou saber mais “sobre o produto da concorrente, assim que a própria NSO justificou publicamente que seu diferencial era a infiltração ‘zero-clique’”. Ou seja, para hackear um computador ou celular, não dependia de nenhuma ação do usuário. Curiosamente, como consta do relatório, a própria Hacking Team foi hackeada em 2015, o que levou a sua falência, deixando o caminho livre à concorrente israelense.

O Pegasus é utilizado para o monitoramento de ativistas, jornalistas e movimentos sociais, servindo, portanto, à violação de direitos humanos e crimes políticos ao redor do mundo. O escândalo de sua venda com tais objetivos ganhou manchetes recentemente.

Segundo o jornalista Sergio Ferrari, em artigo publicado no dia 28 de julho último no portal de notícias Ciranda, o México é o país mais afetado pelo uso do Pegasus, com 15 mil números de telefones daquele país entre os 50 mil aparelhos monitorados. “Pertencem, entre outros, a defensores dos direitos humanos, vários parentes dos 43 estudantes de Ayotzinapa, pesquisadores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a cerca de 25 jornalistas”, pontua.

A extradição de Zerón poderia revelar as ramificações regionais com essa intrincada rede de espionagem, incluindo suas implicações na perseguição de ativistas e na própria condução da investigação do caso de Ayotzinapa. Por exemplo, como informa Dolores Guerra, a versão oficial apresentada pela AIC “foi refutada pela equipe internacional de peritos independentes (Giei). Segundo a perícia realizada pela Citizen Lab em 2017, alguns dos participantes da Giei foram vigiados pelo malware da NSO Group”.

Por justiça às vítimas de Ayotzinapa, urge pressionar pela extradição de Zerón e ir além: avançar nas denúncias das relações criminosas entre os governos latino-americanos e a indústria da morte israelense.

LEIA: Relembrando a criação da CSN e a posição do Brasil na II Guerra

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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