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Por que Israel separa as mães de Gaza de seus filhos doentes?

Criança palestina ferida por bombardeios israelenses, executados durante a madrugada, recebe cuidados no Hospital al-Shifa, na Cidade de Gaza, 19 de maio de 2021 [Fatima Shbair/Getty Images]

Em seu relatório anual de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou: “Todos os pacientes e acompanhantes da Faixa de Gaza têm de solicitar autorização israelense para sair do território e obter acesso a hospitais na Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Israel”.

O bloqueio israelenese a Gaza, desde 2006, levou a uma deterioração drástica dos serviços públicos de saúde — hoje, o setor está em colapso. O suprimento de remédios básicos, itens descartáveis, materiais de laboratório e equipamentos médicos é severamente restrito pelo cerco militar. Os palestinos no território sitiado que sofrem de doenças graves, em geral, têm de buscar tratamento no exterior; muitas vezes, na Cisjordânia ocupada ou no território considerado Israel — isto é, ocupado via limpeza étnica, em 1948. Para deixar Gaza, no entanto, os pacientes têm de obter autorizações extraordinárias da ocupação, frequentemente indeferidas por “razões de segurança”. Em alguns casos, Israel permite saídas temporárias de Gaza, mas nem sempre. Mesmo quando se trata de crianças, a ocupação israelense costuma impedir pais e responsáveis de acompanhar os pacientes em Israel e na Cisjordânia.

Em 2019, na Faixa de Gaza, o número de apelos registrados por pacientes palestinos para sair do território em busca de cuidados médicos chegou a 1.750 solicitações, segundo a OMS. No mesmo período, foram mais de sete mil pedidos na Cisjordânia ocupada. “O acesso foi particularmente problemático em 2019, com a queda na taxa de aprovação das solicitações”, declarou o órgão internacional. Conforme reportagem do The Guardian, menos de duas mil autorizações para que os pais ou responsáveis acompanhem suas crianças foram concedidas pela ocupação. Cinquenta e seis bebês de Gaza foram separados de suas mães e pais para receber tratamento urgente fora do território sitiado, desde o início de 2020.

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O Centro Palestino de Direitos Humanos (CPDH) em Gaza compartilhou comigo as razões pelas quais as mães palestinas são impedidas de viajar e acompanhar seus filhos doentes durante o tratamento. A idade da mãe é um dos fatores, embora abrangente: entre 18 e 45 anos. Além disso, Israel insiste em razões de segurança e “erros” nos dados pessoais são convenientemente comuns ao negar as solicitações — por exemplo, o número de telefone. Assim que as autoridades da ocupação descobrem que o celular da mãe não está registrado em seu nome ou é utilizado por outra pessoa, impedem-na arbitrariamente de acompanhar seu filho. É comum que os números de telefone sejam registrados em nome do pai, irmão ou marido, embora o parentesco seja ignorado por Israel ao avaliar os apelos.

Mães palestinas aguardam na fronteira para deixar Gaza em busca de tratamento médio [OMS/Centro Palestino de Direitos Humanos]

Mohammed Bseiso, advogado do Centro Palestino de Direitos Humanos, descreveu tais razões como insignificantes. “Tratam-se de desculpas e conceder tais ‘justificativas’ é algo novo. Até não muito tempo atrás, as autoridades israelenses jamais concediam razões a menos que um advogado se envolvesse no caso”.

O centro humanitário conseguiu obter uma série de autorizações de viagem para os palestinos de Gaza, mas o processo é bastante árduo, à medida que demanda diversas visitas a escritórios israelenses. “Como advogado do CPDH, após analisar os arquivos, vou direto ao assessor jurídico do checkpoint de Erez. Caso não me responda, vou à promotoria pública israelense. Caso ainda assim não haja resposta, vou às cortes de Israel”.

Somente em 2019, o CPDH recebeu 1.041 pedidos para que familiares acompanhassem pacientes que deixaram Gaza para tratamento. Desde então, eventualmente 550 foram aprovados para viajar à Cisjordânia, após negativa inicial da ocupação israelense. O restante foi rejeitado por questões de segurança, pretextos médicos ou aguardam até hoje na fila.

Devido às restrições de viagem, a maioria das crianças que saem do território sitiado para receber cuidados é acompanhada por suas avós ou tias. A ausência da mãe é descrita como mais um trauma psicológico imposto à infância, além de violação de seu direito ao cuidado de saúde com apoio dos pais.

Osama tem um ano de idade e nasceu na Cidade de Gaza; em junho de 2020, foi diagnosticado com leucemia. O bloqueio militar impôs ao menino a necessidade de uma autorização israelense para que buscasse tratamento adequado fora de Gaza. Após a família enfrentar diversos obstáculos, um hospital na Cisjordânia tomou a iniciativa e foi capaz de coordenar a autorização de Osama. Não obstante, o bebê foi separado de sua mãe, muito embora ela ainda o amamentasse. A família foi alertada de que a mãe não poderia viajar devido à sua idade e a avó de Osama teve de acompanhá-lo em seu lugar.

Mais de dois milhões de palestinos vivem na Faixa de Gaza, dos quais 40% são crianças que sofrem de algum modo como resultado do colapso de saúde. Quase um terço das solicitações de viagem com fins médicos são de pacientes com câncer. Há também demandas por cirurgias especializadas, diagnósticos por imagens ou outros serviços indisponíveis em Gaza.

O resultado de tamanha crise humanitária é que pessoas como Hanan al-Khudari, impedida de acompanhar seu filho Luay de três anos à Cisjordânia, para tratamento oncológico, continuam a chegar às manchetes. Segundo o jornal Haaretz, al-Khudari é parente de um membro do movimento Hamas e, por essa razão, foi rechaçada pelas autoridades israelenses.

Luay, menino de três anos da Faixa de Gaza, em um hospital da Cisjordânia, onde recebe tratamento contra o câncer [Centro Palestino de Direitos Humanos]

O acesso ao cuidado médico é um direito fundamental disponível em quase todo o mundo. Porém, não em Gaza. Autoridades da ocupação israelense instalaram todo e qualquer obstáculo possível aos palestinos locais, através da burocracia ou outros meios, e efetivamente impedem que muitos pacientes em estado grave obtenham tratamento para salvar suas vidas. Os doentes têm de entregar detalhes de seu histórico de saúde, cartas de recomendação, evidências de apoio financeiro e confirmação de que Gaza carece do tratamento necessário. Como se não bastasse, Israel prioriza o importantíssimo número de telefone registrado e utilizado exclusivamente pelo acompanhante. Em muitos casos, a autorização é postergada até o último minuto; por vezes, na madrugada anterior à data proposta.

Quantas pessoas morreram, imagino, à espera de uma série de procedimentos arbitrários fabricados pela ocupação israelense? Não importa o número, sabemos que basta. Ninguém deve passar por tamanha humilhação, sob risco de morte, para assegurar seu direito fundamental de acesso à saúde.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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