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Como o regime de Sisi transformou o massacre de Rabaa em seu mito fundador

Homem egípcio em desespero durante violenta repressão das forças de segurança do país ao protesto pacífico na Praça Rabaa al-Adawiyya, Cairo, capital do Egito, 14 de agosto de 2013 [Mohammed Elshamy/Agência Anadolu]
Homem egípcio em desespero durante violenta repressão das forças de segurança do país ao protesto pacífico na Praça Rabaa al-Adawiyya, Cairo, capital do Egito, 14 de agosto de 2013 [Mohammed Elshamy/Agência Anadolu]

No último sábado (17), emissoras de televisão do Egito transmitiram o quinto episódio da série ficcional The Choice: Part Two, às vastas audiências do mês do Ramadã. O capítulo em questão retrata os eventos da dispersão do protesto pacífico na Praça de Rabaa al-Adawiya, em 2013, que resultou em ao menos 817 mortos — de fato, provavelmente mais de mil vítimas entre os manifestantes.

A série foi produzida pela Synergy, produtora indiretamente controlada pelos serviços de inteligência do Egito. A narrativa, portanto, ao representar os manifestantes como fanáticos armados e as forças de segurança com enorme comedimento, reflete uma versão semi-oficial elaborada pelo próprio regime.

A escolha de dramatizar o pior massacre na história moderna do Egito, um evento por si só profundamente polarizante, pode parecer peculiar. Contudo, este mesmo massacre é precisamente o evento de fundação do regime vigente e o mito construído em torno do incidente demonstra extrema importância.

Antes mesmo das forças de segurança perpetrarem o massacre de Rabaa, em agosto de 2013, o então Ministro da Defesa Abdel Fattah el-Sisi convocou protestos em massa para autorizá-lo a “combater o terrorismo” — em clara referência à dispersão forçosa de um protesto sit-in conduzido pela Irmandade Muçulmana. O apelo foi acompanhado por vasta campanha publicitária, a fim de retratar a manifestação pacífica como ato armado e acusar manifestantes de sequestrar e torturar cidadãos comuns.

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A estratégia não era meramente voltada à fabricação de apoio popular às ações repressivas do estado, mas criar efetivamente uma atmosfera favorável a um assassinato de massa — em outras palavras, solicitar a ativa participação de um amplo segmento da população na execução sumária de opositores políticos. Este fato transpareceu em sua plenitude no dia do massacre, quando manifestantes que tentavam fugir da violência foram presos por grupos clandestinos de residentes locais.

Assassinato em massa

O ato fundamental do assassinato em massa criou um vínculo orgânico entre o regime e grande parte da população, que aprovou o massacre e ativamente o apoiou. A mesma justificativa utilizada para reprimir a Irmandade Muçulmana foi posteriormente aplicada contra opositores e ativistas seculares da sociedade civil.

A execução comunitária ainda possuía efetivamente subtextos ideológicos no nasserismo e no nacionalismo árabe, representados pelo falecido presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, conjunto de preceitos ideológicos que ainda considera as práticas do estado como naturalmente harmônicas à vontade popular, ao invés de concernentes a uma miríade de grupos sociais distintos com interesses conflitantes, que demandam mediação.

Apoiadores da Irmandade Muçulmana correm de gás lacrimogêneo durante repressão da polícia de choque do Egito, perto da praça de Rabaa, no Cairo, em novembro de 2013 [AFP]

Sob tal perspectiva, quando a pátria impõe sua vontade através do exército, torna-se então a própria personificação do espírito nacional. Este conceito não apenas estabelece os alicerces para uma forma extrema de nacionalismo chauvinista, como também justifica práticas de repressão em massa contra opositores políticos e minorias.

Na ocasião do massacre, a Irmandade Muçulmana era descrita como “alheia” à nação, portanto, justificando violenta repressão. Qualquer dissidência da “vontade popular” era considerada uma ameaça existencial à ideia de um estado orgânico materializado por noções vagas e disformes de uma identidade nacional.

Esta base ideológica foi posteriormente usada para reprimir toda e qualquer oposição secular, esmagar o movimento feminista e outros, em nome de uma suposta “vontade popular” propagandeada como conservadora e patriarcal.

Valor simbólico

O massacre de Rabaa deteve ainda profundo valor simbólico, a fim de rivalizar com 28 de janeiro de 2011, quando manifestantes enfim conseguiram derrotar as forças de segurança e reivindicar o espaço público pela primeira vez em décadas. Na essência, o massacre foi o inverso daquele episódio. Forças de segurança recapturaram o espaço público ao impor uma violência espetacular, inclusive sob uma política sistemática de aparentemente infligir o maior número de baixas possível.

O espetáculo da violência expressou uma mensagem clara. Nenhuma reprise de 28 de janeiro seria tolerada, não importa o número de mortos. Tratou-se de uma escalada de violência com franco potencial de rivalizar com a Síria, ao executar assassinatos indiscriminados contra civis desarmados, supostamente membros da oposição.

Daquele momento em diante, o espaço público voltou a pertencer ao regime — um nível de controle que seria legalizado pela lei antiprotesto outorgada em novembro de 2013. Quando o espectro de protestos populares novamente assombrou o governo, em setembro de 2019, Sisi reuniu seus apoiadores no mesmo local onde chacinou seus oponentes, seis anos antes: a praça de Rabaa.

As consequências do massacre são inúmeras e duradouras, ao instituir as fundações de um sistema político essencialmente polarizado. O massacre tornou impossível à Irmandade Muçulmana aceitar a nova realidade política ou sequer engajar-se no processo político, dado que qualquer tentativa do tipo conduzida pela liderança do grupo poderia levá-lo à dissolução por pressão da base.

Após o massacre, a Irmandade Muçulmana foi absolutamente excluída do processo político e mais tarde designada como grupo terrorista. A polarização permitiu ao governo de Sisi fundamentalmente despolitizar a política, ao retratar divergências públicas como uma luta épica entre a nação, personificada no regime, e seus oponentes, descritos pelo presidente como “povo do mal”. Tudo isso permitiu ao regime egípcio ampliar sua repressão a todo e qualquer grupo considerado de oposição, ao preservar ainda considerável apoio popular.

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Lógica obstinada

A construção ideológica também permitiu ao regime maquiar seu fracasso econômico e social à medida que toda contestação às suas políticas era descrita como conspiração de “forças do mal” em parceria com a Irmandade Muçulmana, com o intuito de destruir a nação. Esta lógica obstinadamente repetida criou um estado de constante emergência e permitiu cada vez maior repressão do estado.

Desta forma, o regime do presidente e general Sisi precisa de seus inimigos e conspirações sem fim para justificar a manutenção do poder, além dos atos massivos de violência, perpetrados com o objetivo de provar à sua base a suposta existência de tais inimigos.

Os custos sociais e os duros traumas pessoais assombram as vítimas do massacre e são difíceis de assimilar. A única forma de superá-los efetivamente é reconhecer o passado para então instituir um árduo processo de justiça e reconciliação, algo impossível nas atuais circunstâncias. Até que isso ocorra, o massacre existirá como sombra vasta e inescapável sobre a sociedade egípcia e a vida política que se oculta.

Este artigo foi publicado originalmente pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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