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Especulações sobre a nova plataforma nos EUA da rede Al Jazeera

Sede da rede Al-Jazeera em Doha, Catar, 5 de dezembro de 2019 [Karim Jaafar/AFP via Getty Images]
Sede da rede Al-Jazeera em Doha, Catar, 5 de dezembro de 2019 [Karim Jaafar/AFP via Getty Images]

Notícias emergiram na noite de ontem (24) de que a Rede de Mídia Al Jazeera (AJMN) pretende lançar uma nova plataforma online denominada Rightly. A própria Al Jazeera confirmou hoje seus planos. “A Rede de Mídia Al Jazeera anunciou hoje o lançamento da Rightly, nova plataforma digital sediada nos Estados Unidos, para gerar conteúdo a audiências atualmente sub-representadas no ambiente de mídia. Rightly será lançada com seu primeiro programa, ‘Right Now with Stephen Kent’, em 25 de fevereiro”.

O Twitter se alvoroçou ao longo da noite. Alguns tuítes expressaram desapontamento com a medida, outros a acolheram. A controvérsia gira em torno de Stephen Kent, o editor responsável pela nova plataforma, notório jornalista de direita que trabalhou para a Fox News por anos e anos. A rede Al Jazeera, contudo, desde sua criação em 1996, costuma associar-se com perspectivas políticas de centro ou esquerda, ao cobrir e expor abusos de direitos humanos e má gestão dos regimes no Oriente Médio. Sua emissora em árabe recebeu louros por supostamente encorajar a Primavera Árabe, que levou a mudanças críticas na infraestrutura política em diversos países da região.

Há uma série de fatores que podemos mencionar sobre as justificativas por trás desta última decisão da AJMN para o mercado dos Estados Unidos. Para começo de conversa, quando a Al Jazeera foi lançada, decidiu reunir audiências antes ignoradas pelo grande circuito da imprensa internacional. Buscou amplificar vozes no Sul Global e abriu sedes em países não falantes do árabe ou do inglês, na Ásia e América Latina, por exemplo. Conquistou diversos públicos e promoveu uma verdadeira compreensão sociopolítica transregional.

Graças aos infindáveis cofres de seus fundadores, isto é, o governo do Catar, histórias que jamais veriam a luz do dia em outras emissoras ou jornais ganharam destaque e prioridade através da Al Jazeera. A rede manteve o lema “uma opinião, outra opinião”, ao ouvir os diversos lados de qualquer disputa.

A presidência de Donald Trump, nos Estados Unidos, levou repórteres e a própria prática do jornalismo à beira do colapso. Vale notar que o comportamento da audiência raramente resulta do consumo de agências de notícias divergentes, ao restringir-se a afiliações políticas e gostos pessoais. Empresas e políticos buscam alcançar certos mercados e eleitorados, ao utilizar distintas plataformas para propagar notícias. Trata-se de algo consumado e aceito nos Estados Unidos. Desta forma, a maioria das redes de imprensa não se constrange de rotular-se de esquerda ou direita, conforme as flutuações do espectro político. Por que haveria de ser diferente para a Rightly, novíssima plataforma da rede Al Jazeera?

Além disso, compreender a politicagem de Trump sobre a transição de poder também pode explicar os novos avanços da rede Al Jazeera nos Estados Unidos, onde sofreu uma série de revezes em meados de 2017. Em 2018, escrevi o seguinte texto ao Monitor do Oriente Médio, que creio ser digno da citação pois concede algum contexto ao lançamento da Rightly:

Em 2017, a Unidade Investigativa da rede produziu um documentário que expôs como o lobby sionista influencia a política britânica. Decorreu de uma investigação à paisana de seis meses, que revelou como Israel penetrou diferentes níveis da democracia britânica. O documentário enfureceu oficiais israelenses no Reino Unido e prejudicou relações entre os países. Como resultado direto, o oficial da embaixada implicado no esquema, Shai Masot, foi exonerado de seu cargo como oficial político sênior e enviado de volta a Israel. O embaixador Mark Regev, nascido na Austrália, foi forçado a desculpar-se publicamente com o governo britânico.

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O programa constrangeu Israel ao ponto deste enviar uma queixa sobre a Al Jazeera ao órgão regulatório de Londres para radiodifusão, telecomunicações e indústrias postais (Ofcom). Após muita deliberação, o Ofcom decidiu a favor da Al Jazeera, ao descrever a série em quatro partes “The Lobby”, divulgada em janeiro de 2017, como efetivamente precisa, em conformidade com as regras de imparcialidade e privacidade, sobretudo, sem ser antissemita. A vitória da rede, porém, não custou pouco, devido aos esforços de representação legal.

Logo após a decisão, Clayton Swisher, diretor da Unidade Investigativa, anunciou que a Al Jazeera preparava um documentário similar sobre o lobby israelense nos Estados Unidos. Desde o anúncio, poderosos grupos de lobby começaram a preparar-se para uma batalha ainda maior, incluindo estratégias para impedir que o filme sequer fosse divulgado.

Parlamentares americanos, desde então, pressionam pela designação da rede Al Jazeera como “agente estrangeiro” nos Estados Unidos. Tais esforços sucederam uma carta enviada pelos congressistas Josh Gottheimer, democrata de Nova Jersey; Lee Zeldin, republicano de Nova York; e outros dezesseis legisladores, incluindo o senador Ted Cruz, notório republicano pelo estado do Texas, que acusaram a Al Jazeera de sabotar diretamente “interesses americanos”. A designação teria graves consequências às suas operações e seus profissionais em solo americano, caso confirmada. A rede de imprensa e seus contratados nos Estados Unidos teriam de revelar informações sobre sua estrutura corporativa, orçamento, gastos e pessoal, compartilhadas no website do Departamento de Justiça. Além disso, a designação traria escrutínio indevido a jornalistas e impacto negativo tremendo às suas carreiras.

A criação da Rightly é uma decisão administrativa, com considerações a certas realidades e empreendimentos em potencial nos Estados Unidos. Pode-se argumentar, trata-se de uma decisão cujo propósito é salvar reputações e carreiras de muitos repórteres da AJMN no país. Sobretudo, ajuda a preservar uma importante marca alternativa no mercado de notícias.

Podemos também concluir que a decisão é resultado da pressão constante imposta durante o governo Trump à Al Jazeera, a fim de evitar que a emissora e seus empregados sejam rechaçados oficialmente nos Estados Unidos. Representa claramente uma decisão em resposta à presidência de Trump.

Além disso, os países do Golfo há muito tempo entraram no mercado americano. Os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, investiram enormes somas em propaganda na CNN e outras plataformas de imprensa. De fato, há um programa inteiro na CNN, apresentado por Becky Anderson, transmitido diretamente de Abu Dhabi. Embora a Al Jazeera possua um escritório ativo nos Estados Unidos, carece ainda de instalações de radiodifusão e acesso às audiências. O histórico e a experiência de Stephen Kent podem facilitar o acesso imediato a certos nichos americanos. “Sua marca, acredita-se, pode ajudar na comunicação de certas mensagens sobre o Catar ao crescente republicanismo e conservadorismo nos Estados Unidos”, declarou a rede internacional. De qualquer modo, a criação da Rightly mantém o lema da Al Jazeera: “uma opinião, outra opinião”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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