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Mourid Barghouti, adeus ao poeta palestino do exílio

O renomado poeta palestino, Mourid Barghouti, que viveu a maior parte da sua vida no exílio, morreu!

O renomado poeta palestino, Mourid Barghouti, que viveu a maior parte da sua vida no exílio, morreu ontem (14), na sua casa em Amã, capital da Jordânia. A causa da sua morte não foi divulgada.

Barghouti nasceu em 8 de julho de1944, no vilarejo palestino Deir Ghassanah, próximo de Ramallah.  Mudou-se para a capital egípcia em 1963, para estudar literatura inglesa na Universidade do Cairo. Formou-se em 1967, mas devido à ocupação israelense, só conseguiu regressar a sua terra 30 anos depois. Em exílio, viveu no Egito, Líbano, Jordânia e Iraque.

Seu único filho, Tamim Barghouti, também é um famoso poeta árabe contemporâneo; nascido no Egito, ele foi considerado o poeta da revolução, após declamar seus poemas na Praça Tahrir, no Cairo, durante protestos contra o ditador egípcio Hosni Mubarak, em 2011, na Primavera Árabe.

Mourid publicou doze livros de poesia em árabe desde o início dos anos 70 e uma coletânea em 1997. Seus poemas foram traduzidos em vários idiomas, incluindo português, inglês, francês, italiano, alemão e russo. Grande parte de seu trabalho foi em poesia, mas ganhou notoriedade internacional com o seu romance autobiográfico de memórias, “Eu vi Ramallah. O livro foi escrito após sua visita a Ramallah, depois da assinatura dos Acordos de Oslo,  e foi descrito pelo crítico Edward Said, no prefácio, como “um dos melhores testemunhos sobre a diáspora palestina”.

No Brasil, o livro “Eu vi Ramallah” foi traduzido direto do árabe para o português por Safa Jubran, professora da Universidade de São Paulo que, em 2019, ganhou prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional, no Catar. Foi publicado pela editora Casa da Palavra, em 2006, e tem prefácio de Edward Said. No lançamento do livro, Mourid Barghouti veio ao Brasil como um dos principais convidados da FLIP, festa literária de Paraty.

Na ocasião, ele foi entrevistado pelo programa Roda Viva, da TV Cultura, onde reafirmou ser um palestino que luta contra a ocupação israelense, falou sobre a resistência de seu povo, seu trabalho como um poeta no exílio e diversas outras questões que continuam extremamente atuais.

“Faço parte do coletivo dos palestinos que lutam contra a ocupação. Não sou soldado, mas participo com minha visão crítica. A visão crítica do nosso próprio desempenho, da liderança palestina. Sou crítico da crueldade e dos crimes israelenses, dos massacres israelenses, do contínuo genocídio que vem sendo praticado contra um povo realmente indefeso.”, disse o poeta.

Ele foi membro da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), mas se manteve distante de partidos políticos. Defendeu um Estado comum, democrático e secular na palestina histórica, com direitos iguais para todos os cidadãos, independentemente de ser cristão, judeu, muçulmano ou ateu.

Criticou abertamente os acordos de Oslo e as concessões feitas por Yasser Arafat, afirmando que o resultado desses chamados “processos de paz” são o crescimento dos assentamentos ilegais nas aldeias palestinas e a construção do muro de separação. “Sou contra os acordos de Oslo, escrevi criticando-os, mas eles não foram aplicados. Então quando criticamos os erros de qualquer resistência no nosso tempo, primeiro temos de criticar o pecado original, a ocupação militar da terra de outros povos à força e a permanência lá por décadas, anos após ano.”, afirmou. Segundo ele, a resistência palestina também comete erros, mas o erro original da sociedade é “ficar surda e em silêncio diante dos apelos e pedidos do povo palestino.”

O escritor afirmou que se dirige primeiro ao seu povo e, por meio dele, dirige-se “a todos os grupos oprimidos de seres humanos, onde quer que tenham estado, onde quer que estejam ou venham a estar.”.

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Para Mourid Barghouti, a poesia não precisa ter seu impacto de maneira imediata na história, pois age de forma lenta e eficaz, moldando a cultura, percepção, consciência e memória das gerações; “Geração após geração, as vozes e os sons, os versos, e rimas, e ritmos dos poetas são transmitidos aos leitores de uma geração a outra e eles moldam nossa alma, moldam a condição humana, moldam nosso gosto.”

Barghouti descreve sua escrita, na prosa e poesia, como suave e sussurrada, “sem excesso de simplificação e sem hipérboles, sem um tom bombástico, sem linguagem heroica.”. Afirma que busca ser preciso em seus versos, escrevendo como se usasse uma câmera e não uma caneta: “Uso muitas imagens, faço seus olhos trabalharem, ou tento fazer isso.”

O poema que se segue, “Um oficial”, exemplifica esse tom simplificado e cinematográfico de seus textos. Foi traduzido para o português pelo grupo de tradução da poesia árabe contemporânea (GTPAC) da Universidade de São Paulo, coordenado por Michel Sleiman, tradutor e professor de árabe da USP, e publicado no artigo “Entre a ironia e o trágico. Da poesia de Mourid Barghouti e Samih Alqasim”, de William Diego Montecinos, um dos tradutores do grupo. No poema, “a atmosfera tranquila construída ao longo do poema é rompida nos últimos versos quando é revelada uma das funções de seu cargo, o que marca um forte teor de denúncia ao representar-se o cotidiano absurdo de um território em conflito, onde a violência faz parte do cotidiano, tornando aquilo que era raro em algo natural. Nesse cenário de contradições, a arte se torna uma ferramenta poderosa como forma de resistência e denúncia”, afirma Montecinos em seu artigo.

Um oficial

Suas mãos se esfregam e a espuma do sabão exala o perfume

suas mãos aparam o bigode diante de um espelho fino

suas mãos ajeitam a gravata de seda na camisa branca para que não fique torta

suas mãos se esticam até o açucareiro

são dois cubos e meio

despeja o chá perfumado, termina

beija a filha pequena e o menino

abraça a esposa que entrega a maleta ele diz: “E o lenço?”

num piscar de olhos, branco e dobrado aparece em suas mãos

ele vai ao trabalho

um sujeito esbelto, impecável

sentado no banco traseiro

um dos deveres de seu cargo

é conduzir os apaixonados

de nuvens tranquilas

até a forca.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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