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Pragmatismo político e Primeira Guerra Mundial: Reino Unido, ‘três promessas’, o povo palestino

Palestinos protestam no 100° aniversário da Declaração Balfour, que determinou o compromisso britânico à criação de um estado sionista, em Nablus, Cisjordânia ocupada, 2 de novembro de 2017 [Jaafar Ahtiyeh/AFP/Getty Images]
Palestinos protestam no 100° aniversário da Declaração Balfour, que determinou o compromisso britânico à criação de um estado sionista, em Nablus, Cisjordânia ocupada, 2 de novembro de 2017 [Jaafar Ahtiyeh/AFP/Getty Images]

A Primeira Guerra Mundial explodiu em 1914, após a ruptura na então balança de poder e a composição de um sistema de alianças na arena europeia. O catalisador imediato da guerra foi o trágico assassinato do príncipe austríaco em Sarajevo, executado por um nacionalista sérvio. Uma reação em cadeia levou o Reino Unido à guerra. Enquanto, as tropas britânicas enfrentavam ativamente as potências centrais no continente europeu, a Palestina ainda era governada pelo Império Otomano. Não obstante, os otomanos erraram seus cálculos sobre os resultados da guerra. Previam uma vitória da Alemanha devido à sua maximização militar e política, no fim do século XIX. A guerra, contudo, causou implicações devastadoras à Palestina, à medida que judeus na Europa concatenavam um cálculo racional para aderir às potências aliadas.

Em 1916, os líderes sionistas ativamente pressionavam o gabinete de governo do Reino Unido. O período da Primeira Guerra Mundial foi então fundamental para que os líderes judeus conduzissem negociações com o governo britânico, aproximação corroborada pelo apoio da população judaica aos aliados, contra a Alemanha. As estruturas internacionais e regionais também foram essenciais ao processo de barganha sobre as terras da Palestina, realizado entre líderes sionistas e oficiais britânicos, sem representação nativa. Durante o período da guerra, Lloyd George era Primeiro-Ministro do Reino Unido; Arthur Balfour era Secretário de Relações Exteriores; Lorde Robert Cecil era seu secretário-adjunto e Lorde Alfred Milner era Secretário do Estado de Guerra. Tais políticos britânicos eram simpáticos ao lobby sionista na Palestina.

Em seu livro Might Over Right: How the Zionists Took Over Palestine (Garnet Publishers, 2009), relata Adel Safty: “Tornar a Grã-Bretanha um patrocinador do projeto sionista seria capaz de assegurar a Palestina como bastião da presença britânica no Egito e no Canal de Suez, além de vínculo territorial à Índia”. O interesse nacional britânico na Palestina era transparente, mas o objetivo sionista representou um fator de convergência crucial para o destino da Palestina.

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Os líderes sionistas enviaram um memorando aos oficiais britânicos, referente a seu pedido para que o Reino Unido considerasse instituir um estado judaico na Palestina. Após refletir sobre o documento, uma declaração oficial foi esboçada pelo governo britânico e enviada ao governo dos Estados Unidos via Justice Brandeis, assessor do então Presidente Woodrow Wilson e co-autor programa sionista global sobre Balfour. O presidente americano aprovou o projeto em 17 de outubro de 1917. Em 2 de novembro do mesmo ano, a Declaração Balfour foi emitida oficialmente pelo Reino Unido à liderança sionista.

Arthur Balfour apresentava, assim, seu consentimento ao Lorde Lionel Walter Rothschild, líder da comunidade judaica britânica, para compor uma carta a ser submetida a todas as organizações sionistas. A declaração oficial que recebeu o nome do então chanceler tratava-se de um comunicado relativamente cauteloso ao projeto sionista, a fim de tentar equilibrar suas demandas com a presença árabe, sobretudo, sem prejudicar os interesses nacionais britânicos.

Prossegue Safty: “Agora com a promessa imperial de apoio ao programa sionista, expressa na Declaração Balfour, a confrontação com o nacionalismo palestino, em suas terras nativas, tornou-se inevitável..”

A Declaração Balfour é um documento de guerra, consentido e aprovado pelos líderes britânicos e americanos, em consideração ampla de cálculos geo-estratégicos e interesses nacionais e militares das potências ocidentais no imediato pós-guerra. De fato, revelou-se um documento histórico altamente controverso. O comunicado contradizia os antigos valores vestfalianos de soberania defendidos pelo sistema ocidental desde 1648. O célebre acadêmico palestino-americano Edward said reiterou que Balfour foi “escrito por uma potência europeia … sobre um território não-europeu … em franca desconsideração tanto à presença quanto aos anseios da maioria residente nativa deste território”.

Desde 1648, as potências ocidentais debatiam bastante a soberania das nações, além de políticas de não-interferência em terras estrangeiras e autodeterminação dos povos. Não obstante, o período de guerra logo no início do século XX descartou tais valores e o suposto pragmatismo tornou-se tendência em toda a Europa. Vencer a guerra era o único foco das potências aliadas. Para tanto, o governo britânico fez uso de quaisquer táticas e ardis ao seu alcance para sair vitorioso. A Declaração de Balfour – ou ainda “Promessa de Balfour” – foi um destes ardis que envolveu diretamente o povo palestino, em benefício do movimento sionista.

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É algo chocante aos historiadores compreender o fenômeno da Declaração Balfour. Em 1916 e 1917, a Palestina não era colônia britânica, portanto, não cabia ao Reino Unido decidir sobre aquela terra em particular. A Primeira Guerra Mundial ainda era travada na arena europeia, em dois frontes, em particular. A Rússia exercia um papel significativo no fronte oriental e forte barreira aos avanços das tropas alemãs contra os aliados. O Reino Unido temia os resultados da crise política em âmbito doméstico, na Rússia, que enfrentava sua Revolução Bolchevique desde março de 1917. O governo revolucionário sob liderança de Lênin então assinou um tratado com a Alemanha para encerrar a participação russa na guerra, em 1918. O fronte oriental logo mostrou-se debilitado pela retirada russa. As potências aliadas sobreviveram à guerra quando os Estados Unidos decidiram enfim entrar no conflito, em 1917. O Reino Unido enfrentava intensa pressão bélica e seus receios sobre a conjuntura na Rússia, na ocasião, levaram sua liderança a deliberadamente conceder a Declaração Balfour aos sionistas, em novembro de 1917.

Claramente, o documento foi discutido e assinado com grande pressa, a fim de acomodar as demandas da guerra. Era parte da estratégia britânica asseverar o apoio dos judeus na Europa. Frequentemente, em tempos de guerra, os estados beligerantes decidem persuadir certos grupos ou nações a fornecer apoio à sua causa, em troca de ganhos territoriais. Era notória a seriedade da oferta britânica por sua simpatia ao lobby sionista, conduzido por líderes judaicos como Chaim Weizmann. E é inegável que tais políticos sionistas demonstraram incrível liderança na diáspora da comunidade judaica.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido ainda envolveu-se em outro acordo com os árabes para libertar suas terras do domínio otomano. De fato, a promessa antecedeu a própria guerra, feita por Sir Henry McMahon, alto-comissariado britânico no Egito, ao xerife Hussein de Meca. McMahon ofereceu a Hussein um estado árabe independente, caso ajudasse no combate britânico contra os turco-otomanos. Ambos compartilhavam interesses em comum com a derrota otomana. O xerife recebeu a tradução em árabe da correspondência britânica que garantia tais compromissos sem qualquer interferência da França. Deste modo, Hussein logo lançou a chamada Grande Revolta Árabe contra o Império Otomano. É preciso notar que a carta de McMahon, de outubro de 2015, incluía a Palestina entre as terras prometidas. Os britânicos, posteriormente, negaram esta inclusão, ao omitir os documentos por algum tempo, publicados apenas em 1939.

Alguns dos políticos e oficiais britânicos perceberam o suposto equívoco de sua promessa aos árabes, em 1915, ao substituí-la por um compromisso com a comunidade judaica, em 1917. Em 1922, o Lorde Islington introduziu o debate sobre o mandato na Palestina à Câmara dos Lordes, ao declarar: “O mandato na Palestina, em sua forma presente, é inaceitável para esta Câmara, pois viola indiretamente as promessas feitas pelo governo de Sua Majestade ao povo da Palestina, na declaração de outubro de 1915 [McMahon], reiteradas em declaração de novembro de 1918, oposta, conforme está, aos sentimentos e anseios da grande maioria do povo palestino”. Infelizmente, a política de governo foi derrotada pela política real.

Sir Edward Grey, então Secretário do Reino Unido para Relações Exteriores, em 1915, escreveu em suas memórias: “Houve dois tratados secretos … feitos na primeira etapa da guerra, bastante importantes. Um era a promessa ao Rei Hussein de que a Arábia seria um estado islâmico independente. Tratava-se de um dos tratados secretos, conforme iniciativa britânica, pelo qual tínhamos responsabilidade especial acima de qualquer outro aliado”. O Reino Unido escolheu, porém, trair o xerife Hussein e exilá-lo à ilha do Chipre. Morreu em Amã, Jordânia, em 1931.

Ao mesmo tempo, o outro acordo, entre Reino Unido e França, certamente representou um desastre aos árabes, à medida que o governo britânico exercia papel de “agente duplo” em nome de interesses próprios para além da guerra. O Acordo de Sykes-Picot foi assinado em segredo, em 19 de maio de 1916, entre oficiais britânicos e franceses, a fim de dividir o Império Otomano entre suas esferas de influência. Segundo o pacto, a Palestina seria colocada sob gestão internacional. O Império Otomano de fato foi fragmentado: áreas vermelhas aos britânicos; áreas azuis aos franceses. A área marrom mencionada no acordo seria “estabelecida sob administração internacional, cuja forma será decidida conforme consultas posteriores à Rússia e subsequente consulta a outros aliados e representantes do xerife de Meca”. A Palestina foi designada área marrom, portanto, zona internacional, incluindo Jerusalém e todas as suas cidades sagradas.

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As “três promessas” de guerra feitas pelos britânicos trouxeram implicações graves ao Oriente Médio e ao povo palestino. O Reino Unido de fato honrou sua promessa aos sionistas, conforme a Declaração Balfour, em franco sacrifício aos direitos dos palestinos. Os sionistas receberam salvo-conduto para estabelecer Israel como estado exclusivamente judaico no Oriente Médio. O xerife Hussein confiou na promessa britânica reafirmada por uma série de correspondências, desde 1915; não obstante, foi traído.

A Palestina e o povo palestino tornaram-se vítimas desta política de poder. A política real adotada por Reino Unido, França, Estados Unidos e movimentos sionistas durante a Primeira Guerra Mundial frustrou os sonhos palestinos por um estado independente e autônomo. De fato, os palestinos sequer deveriam levar a culpa quando os estados árabes decidiram mobilizar seus exércitos em 1948, contra Israel. A raiz da Guerra Árabe-Israelense foi semeada pelas “três promessas” feitas pelo governo britânico. O desapontamento árabe sobre o pós-Primeira Guerra culminaram nos sucessivos embates contra Israel. Injustiças em tempo de guerra deveriam representar hoje uma lição ao mundo, à medida que nações que glorificam ideias humanistas e libertárias deveriam construir os precedentes para todas as outras. O governo britânico, sobretudo, deveria vir adiante e retificar sua dívida história aos palestinos.

Após décadas e décadas de luta e sofrimento, os palestinos jamais desistiram. O Hamas trava uma guerra com Israel quase diariamente. O Estado da Palestina mantém esforços diplomáticos com Israel e países ocidentais. O povo palestino, sobretudo, permanece forte em defesa de sua terra. Tratam-se de gerações perdidas em meio à luta. Em 2016, o Estado da Palestina declarou que pretendia processar o Reino Unido no Tribunal Penal Internacional. Apenas em outubro de 2020, advogados palestinos conseguiram registrar uma queixa na cidade de Nablus, Cisjordânia, pela declaração britânica de 1917, conforme iniciativa da Federação de Sindicatos Independentes e Democráticos. Recentemente, Munib Al-Masri, cidadão palestino, também processou o governo britânico por Balfour. Tais casos emitem sinais simbólicos aos palestinos e mensagem clara e direta ao Reino Unido para que possa sanar sua dívida histórica com a Palestina.

Evidente, o povo palestino não desfruta dos mesmos poderes para lutar contra o governo britânico nas cortes internacionais. A lei internacional, infelizmente, costuma pender aos poderosos. Contudo, conforme princípios de ética, o Reino Unido de fato carrega uma dívida que passou de geração a geração. A história repetirá seu nome ao lado de suas falhas, nos livros porvir. Os palestinos já não podem carregar o fardo do pragmatismo político ocidental, da balança de poder e do velho sistema de alianças da Primeira Guerra Mundial. Há fissuras nas estruturas regionais e internacionais, e mesmo domésticas, profundas demais impostas às costas do povo palestino, consequências ainda das mentiras proferidas no início do século XX.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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