Portuguese / English

Middle East Near You

Macron está realmente trabalhando para desradicalizar o Islã?

O presidente francês, Emmanuel Macro,n em Bagdá, Iraque em 2 de setembro de 2020 [Agência Murtadha Al-Sudani/ Anadolu]
O presidente francês, Emmanuel Macro,n em Bagdá, Iraque em 2 de setembro de 2020 [Agência Murtadha Al-Sudani/ Anadolu]

Ao revelar seu plano para combater o “separatismo” na França, o presidente Emmanuel Macron se referiu à preferência dada à lei religiosa aos valores republicanos e seculares do país pelos cidadãos muçulmanos. Ao fazer isso, ele se colocou em rota de colisão com o Islã e os muçulmanos em sua tentativa de lutar contra o “radicalismo islâmico” na França.

Macron indicou que ele seria uma ponta de lança nesta batalha, sem dúvida na esperança de que outros líderes mundiais façam o mesmo. Ele insistiu que não faria “nenhuma concessão” em seu plano de repressão ao Islã e aos muçulmanos na França. “O Islã é uma religião que está em crise em todo o mundo hoje”, afirmou ele, “não estamos vendo isso apenas em nosso país”.

Ele quer proteger a laicidade francesa, a separação entre igreja e estado que data de 1905, que supostamente mantém o estado neutro em termos de religião, deixando as pessoas livres para seguir qualquer fé que escolherem. “O secularismo é o cimento de uma França unida”, disse ele.

O presidente francês disse que vai apresentar em dezembro um projeto de lei que vai resolver os problemas que surgem em nome da religião. Nesse ínterim, ele acusa os muçulmanos de tentarem se separar da República e, portanto, não respeitar suas leis seculares.

Seu projeto, portanto, procurará impedir que crianças muçulmanas frequentem internatos que oferecem educação islâmica junto com o programa secular francês. Também evitará o ensino à distância para alunos muçulmanos que não podem ingressar em escolas públicas porque, por exemplo, são meninas que insistem em usar o hijab.

LEIA: Macron baixou o tom contra a Turquia, mas basta?

O projeto de lei também reprimirá as mesquitas, pois impedirá que imãs estrangeiros sejam convidados a liderar orações durante o Ramadã e acabará com o sistema de “imãs destacados”, que permite que eles sejam treinados em países muçulmanos como Argélia, Marrocos e Turquia antes de se mudarem para França.

O discurso de Macron ofendeu os seis milhões de muçulmanos da França, que o acusaram de “incitar o sentimento islamofóbico e racista”. Também houve relatos de muitos muçulmanos em todo o mundo acusando-o de espalhar ódio e incitar a violência.

Longe da reação muçulmana, vale a pena olhar seu projeto de lei proposto. Em um estado secular, deve haver tolerância mútua entre pessoas de diferentes crenças e o estado deve ser neutro e não discriminar em suas relações com seus cidadãos, independentemente de sua religião. A liberdade religiosa está realmente estipulada no Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar sua religião ou crença, e liberdade, individual ou em comunidade com outros e em público ou privado, de manifestar sua religião ou crença no ensino, prática, adoração e observância. ”

Macron está planejando violar os direitos dos muçulmanos na França para desenvolver um “Islã francês” secularizado? Isso não seria uma surpresa, já que a França tem um histórico de violações de direitos humanos e aprovação de leis discriminatórias contra muçulmanos. Em 2010, por exemplo, as mulheres muçulmanas foram proibidas de usar o hijab em escolas do governo e espaços públicos, e em 2015 o maiô “burkini” de uma peça só foi proibido em praias públicas e piscinas públicas. As mulheres muçulmanas foram, portanto, obrigadas por lei a revelar seus corpos em público, contra os princípios de sua fé.

De acordo com Lanna Hollo, uma oficial jurídica sênior da Open Society Justice Initiative em Paris, Macron, os políticos franceses e as leis francesas visam principalmente os muçulmanos, que são os “melhores aliados” da polícia na manutenção da ordem pública. “A discriminação contra as comunidades minoritárias não é apenas ilegal, mas também contraproducente”, escreveu Hollo. “Repressão e tratamento discriminatório invariavelmente geram ressentimento e reação.”

LEIA: ‘Você não pode nos dar sermão sobre humanidade’, afirma Erdogan a Macron

Hassen Chalghoumi é um Imam francês moderado em um subúrbio de Paris. Ele disse ao New York Times achar  que as conversões também foram impulsionadas pelo secularismo oficial da França, que ele diz gerar um vazio espiritual. O secularismo, observou ele, “tornou-se antirreligioso”.

Macron afirma que seu projeto de lei é necessário após ataques perpetrados por muçulmanos, incluindo o ataque à revista Charlie Hebdo, que publicou caricaturas satíricas do profeta Maomé, que a paz esteja com ele,  e que a proposta de lei visa reprimir o extremismo e o radicalismo entre os convertidos ao Islã . Eu sou cético quanto a isso, porque apenas a educação genuína,  religiosa e até mesmo a secular, podem conter esse fenômeno negativo entre os muçulmanos, incluindo os convertidos.

Manifestantes contra a reimpressão do cartoon do Profeta Maomé pela revista francesa Charlie Hebdo, em Istambul, em 13 de setembro de 2020 [Ozan Kosé/ AFP/ Getty Images]

Manifestantes contra a reimpressão do cartoon do Profeta Maomé pela revista francesa Charlie Hebdo, em Istambul, em 13 de setembro de 2020 [Ozan Kosé/ AFP/ Getty Images]

As regras rígidas na França empurram os jovens muçulmanos e convertidos a abandonar os estudos. Emilie, uma garota francesa de 14 anos que se converteu ao Islã foi obrigada a abandonar a escola depois que foi proibida de usar o hijab. Emilie foi levada a um reformatório pelo Ministério da Justiça, que cuida de casos difíceis envolvendo menores, da delinquência à radicalização.

“Eles estavam preocupados que eu tivesse radicalizado, quando esse não era o caso”, explicou ela. “Eu só queria praticar minha religião da maneira que fizesse sentido para mim”. Se Emilie não fosse muçulmana na época, ela teria se radicalizado no reformatório devido ao duro interrogatório e à convivência com jovens difíceis. Ela não teria recebido a educação necessária em sua idade.

“O Islã tem um efeito pacífico sobre os convertidos”, disse Samir Amghar, um sociólogo e especialista em Islã radical na Europa ao New York Times. “O mundo parece mais claro [para os convertidos] depois que eles se convertem.” Ele ressaltou que o Islã oferece mais estrutura e disciplina do que outras religiões.

O Atlantic relatou evidências sobre isso quando descobriu que as pessoas que realizaram os ataques em Paris e Nice “não eram muçulmanos devotos que frequentavam mesquitas regularmente, embora matassem em nome da religião”. Ele disse que Redouane Lakdim, o atacante Carcassone e Trèbes, que foi morto em 2004, “foi preso em 2015 e 2016 por porte de armas de fogo e drogas, respectivamente, e era conhecido por ser ativo em sites Salafi”.

LEIA: Turquia acusa Macron de semear islamofobia

A busca francesa pelo Islã e pelos muçulmanos é ilógica. “Estamos tentando organizar uma religião que preocupa seis milhões de pessoas na França, a fim de evitar que 200 delas se tornem terroristas”, disse Olivier Roy, um estudioso do Islã e professor do Instituto Universitário Europeu em Florença a revista. “Não podemos ver que é um absurdo?” Ele observou que “cabe aos muçulmanos” e não ao Estado, avaliar e fazer reformas em relação à sua religião.

As afirmações de Macron sobre o Islã e os muçulmanos são refutadas facilmente. Eu sugeriria, portanto, que ele está de fato “estimulando o sentimento islamofóbico e racista de modo a atrair os eleitores de extrema direita” e está tentando desesperadamente escapar de seus repetidos fracassos de política em casa e no exterior. O presidente francês está realmente trabalhando para desradicalizar o Islã? De modo nenhum; ele só quer ser reeleito.

LEIA: Hezbollah retalia Macron por acusações ao grupo

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
ArtigoEuropa & RússiaFrançaOpinião
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments