Portuguese / English

Middle East Near You

Há mortos sem sepultura no Iraque

Mulher iraquiana exibe uma foto de seu filho, com quem perdeu, durante protestos contra o governo na Ponte Siniq, em Bagdá, capital do Iraque, 24 de novembro de 2019 [Sabah Arar/AFP/Getty Images]
Mulher iraquiana exibe uma foto de seu filho, com quem perdeu, durante protestos contra o governo na Ponte Siniq, em Bagdá, capital do Iraque, 24 de novembro de 2019 [Sabah Arar/AFP/Getty Images]

“Eles vão nos matar, não vão?” “Acho que não. Querem nos assustar.”

“Meu filho, talvez, foi torturado e morto. Talvez tenham o espancado tanto que agora continua detido até que se recupere o bastante para ser solto. Não importa. O que está feito está feito. Você tem de chegar a eles e dizer: Vou aceitá-lo em qualquer condição.”

Tais apelos são trechos de uma cena do filme Missing (Desaparecido), dirigido por Costa-Gravas e produzido por Hollywood, no início da década de 1980. A produção conta a história do desaparecimento do jornalista americano Charles Horman, em meio à escalada de violência no Chile do general Augusto Pinochet, após a deposição do presidente Salvador Allende, há cinco décadas atrás.

Tais apelos repetem-se até hoje por sequestros e desaparecimentos executados por milícias em diferentes partes do Iraque, longe de qualquer autoridade de estado e, em alguns casos, sob sua vigília indiferente, sem qualquer objeção. Tais apelos tornaram-se parte comum de diálogos desesperados que incorrem a milhares de famílias iraquianas que subitamente perderam seus filhos há anos e anos, e não sabem sequer qual foi seu destino. Já não possuem o luxo do tempo para aguardar uma decisão que eventualmente lhes traga justiça. Anseiam por uma resposta urgente, para saber se seus filhos estão vivos ou mortos. Caso mortos, anseiam saber se todos os traços de seus entes queridos foram apagados por seus assassinos, bastante conhecidos pelas autoridades de segurança, que sequer ousam responsabilizá-los.

Alguns destes apelos chegaram aos ouvidos do Primeiro-Ministro Mustafa Al-Kadhimi e possivelmente a Jenin Blashardt, representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas no Iraque. Blashardt recordou Kadhimi do Dia internacional dos Desaparecidos, em 30 de agosto, data que passou sem muita atenção. Em seguida, o premiê iraquiano ordenou inquérito sobre os casos de sequestro e desaparecimento, medida descrita como “corajosa”, caso converta-se em ação real a fim de responsabilizar os “notórios” criminosos envolvidos. Contudo, caso abandone suas promessas, não haverá surpresa alguma, em particular, dado que o premiê caminha sobre a corda-bamba, que pode romper-se a qualquer instante.

Aqui nos lembramos que tais casos tiveram início logo após a invasão dos Estados Unidos no Iraque, com a multiplicação súbita de homens em balaclava, que chamam a si próprios de “Exército de Mahdi” e agem nas ruas e becos do país. Rapidamente, seus sequestros e assassinatos escalaram e ganharam ritmo. Tudo isso sob influência de agentes ligados ao Irã, que conquistaram vantagem ao dominar as capacidades de segurança na arena iraquiana. Foram tais milícias que executaram planos sistemáticos, plenos de má fé, para sequestrar e assassinar centenas de cientistas qualificados, médicos, acadêmicos, líderes militares e ativistas civis. Tiveram ajuda do infame Ato de Terrorismo, especialmente Artigo 4, além de receber inteligência de informantes secretos para então incorrer em repressão sumária contra milhares de inocentes, sem qualquer investigação. Um estudo estimou que o número de pessoas sequestradas e desaparecidas no país está em dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças. Um número assustador – suficiente por si só para retratar uma imagem realista da gravidade dos crimes cometidos por tais milícias. Estes crimes podem facilmente ser classificados como genocídio – categoria reivindicada pelo Centro Internacional para Justiça de Genebra, que considera a escalada nos sequestros e desaparecimentos sistemáticos um fenômeno sinistro com objetivo de silenciar opositores e impedir ativistas de exercer seu direito a manifestação e expressão.

LEIA: É hora de desmilitarizar a relação entre Estados Unidos e Iraque

Confrontar este fenômeno e revelar os destinos dos milhares de sequestrados e desaparecidos no Iraque poderá não ter êxito algum sem desarmar as milícias em campo, desmantelá-las e secar suas fontes de recursos, responsáveis por compor um exército paralelo plenamente ativo. Kadhimi está mais ciente do problema do que qualquer outro, a partir de dados da agência de inteligência do país. Kadhimi sabe muito bem: tais milícias devem ser eliminadas antes de conseguirem, enfim, depor seu governo e tomar o poder.

Traduzido da Al Araby Al Jadeed, em 16 de setembro de 2020

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
ArtigoIraqueOpiniãoOriente Médio
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments