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Como lobistas de Israel ocuparam o legado de Mandela

Tentativas de defensores de Israel de representar meu avô como pacifista liberal são uma distorção de seu legado
Yasser Arafat, Presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), encontra-se com o Presidente da África do Sul Nelson Mandela, na cúpula da Organização de Unidade Africana, em Túnis, Tunísia, 13 de junho de 1994 [Fethi Belaid/AFP/Getty Images]
Yasser Arafat, Presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), encontra-se com o Presidente da África do Sul Nelson Mandela, na cúpula da Organização de Unidade Africana, em Túnis, Tunísia, 13 de junho de 1994 [Fethi Belaid/AFP/Getty Images]

“Onde está o Mandela palestino?” é uma pergunta que costumo ouvir de defensores de Israel. O que querem realmente saber é onde está o seu equivalente palestino a Nelson Mandela – um homem que, acreditam, ofereceu apenas ramos de oliveiras e mero diálogo. Onde está a versão palestina de Mandela, que (na imaginação sionista) adorou o opressor tanto quanto preparou-se para perdoar e reconciliar-se incondicionalmente?

Lobistas de Israel, na África do Sul e no mundo, ressuscitaram meu avô como pacifista liberal que, com toda a benevolência, fez as pazes com seus inimigos. Reduzir a vida de Rolihlahla – o nome do meio de Nelson Mandela, isto é, “aquele que arranca os galhos da árvore” ou “causador de problemas” – a pacificador e reconciliador é uma distorção deliberada de seu legado.

O presidente Mandela viveu de acordo com seu nome do meio. Foi um revolucionário, um intelectual e um combatente da liberdade. Sua vida foi dedicada a resistir à opressão e restaurar a dignidade. A forma de resistência que defendia era determinada pelo opressor. “É inútil a nós continuar a falar de paz e não violência contra um governo cujas únicas respostas são ataques selvagens”, alertou Mandela em maio de 1961, sete meses antes de tornar-se o primeiro comandante do recém-formada braço armado do Congresso Nacional Africano – ou uMkhonto we Sizwe (Lança da Nação).

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Entretanto, quando apoiadores de Israel falam sobre Mandela, concentram-se exclusivamente em sua mensagem de diálogo e reconciliação. Consequentemente, a história de Madiba e a transição à democracia na África do Sul é reduzida a um conto de fadas de perdão, ao invés de uma longa, dura e por vezes enfurecida crônica de justiça e liberdade. Diálogo, perdão e reconciliação devem retornar a seu devido contexto, quando falamos da história de Mandela e da África do Sul

A causa de Nelson Mandela não era paz e reconciliação; era justiça e liberdade. Reconciliação e perdão vieram apenas após a conquista da liberdade. Antes disso, Mandela considerava qualquer tipo de “reconciliação” com o opressor como forma de submissão e arma para cooptar o movimento de liberdade.

Os aliados da África do Sul na luta anti-apartheid jamais nos pediram para fazer as pazes com nossos opressores antes de conquistarmos a devida liberdade. Pedir aos sul-africanos que se engajassem no diálogo com o governo do apartheid dentro do contexto de estado policial brutal, caracterizado pela implacável expropriação do povo, por restrições à liberdade de ir e vir, por violentas repressões a protestos, por prisões sem julgamento, era de fato nos pedir para colaborar com nossos opressores. O mundo jamais pediu – ou sequer esperou – tais respostas do sul-africanos. Ainda assim, impõe tais demandas aos palestinos, que vivem sob as mesmas condições, senão piores.

Mandela, o Piedoso, é particularmente adorado pelos lobistas de Israel. Amam recordar como Mandela conquistou a confiança de seus inimigos e dispôs-se a tomar chá com Betsie Verwoerd, viúva do arquiteto do apartheid, Hendrik Verwoerd. Os apologistas de Israel querem que o mundo acredite que, tão logo libertado Nelson Rolihlahla Mandela, decidiu abandonar a luta armada e tranquilamente aderir às negociações com o governo do apartheid, sem qualquer demanda ou pré-condição. “Mesmo após 27 anos na prisão, quando foi solto, Mandela ofereceu o diálogo, não a violência”, alega o escritor sul-africano Benjamin Pogrund. Isso não é verdade.

Palestinos reúnem ao redor de um memorial para o falecido presidente sul-africano Nelson Mandela, em área da Cidade Velha de Jerusalém habitada por muitos africanos, em 7 de dezembro de 2013 [Saeed Qaq/Apaimages]

Palestinos reúnem ao redor de um memorial para o falecido presidente sul-africano Nelson Mandela, em área da Cidade Velha de Jerusalém habitada por muitos africanos, em 7 de dezembro de 2013 [Saeed Qaq/Apaimages]

No dia em que foi solto da prisão, disse Mandela: “Os fatores que tornaram necessária a luta armada ainda existem hoje. Não temos alternativa senão continuar. Expressamos nossa esperança de que um clima propício para a solução negociada seja criado logo, para que não precisemos mais nos engajar na luta armada.”

Mandela não aderiu às negociações enquanto negros sul-africanos ainda eram violentamente expropriados e perseguidos, ou enquanto nossos líderes por liberdade ainda estavam mantidos nas prisões do apartheid, torturados e assassinados. “O avanço das negociações e a retórica da paz, à medida que o mesmo governo conduz uma guerra contra nós, é uma posição que não podemos aceitar”, declarou Madiba em setembro de 1990, na cúpula da Organização de Unidade Africana (OUA).

Havia condições básicas a serem alcançadas antes que Mandela pudesse dar início às negociações. Incluíam o fim da violência do estado contra os negros sul-africanos, a libertação dos prisioneiros políticos e o retorno dos exilados. No entanto, quando os palestinos pedem pelas mesmas condições antes de sentarem-se à mesa de negociações, são chamados de teimosos e irracionais.

O defensores de Israel convenceram a si mesmos que os palestinos são o oposto do que representa Mandela. Onde quer que os palestinos resistam à cooptação israelense, ouvem com frequência que Madiba jamais se comportaria desta maneira.

Segundo a mentalidade sionista, Mandela (diferente de Arafat) aceitaria os checkpoints, a construção de assentamentos ilegais e os sete anos de negociações infrutíferas decorrentes de Oslo e dos Acordos de Camp David.

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Segundo a imaginação israelense, Nelson Mandela (diferente de Mahmoud Abbas) concordaria com o acordo secreto de bantustões palestinos, promovido por Ehud Olmert, em 2008, esboçado às pressas em um guardanapo.

O Madiba que criaram jamais rejeitaria a “oportunidade única” de estabelecer um estado palestino desmilitarizado, cujos principais centros estariam apartados e fragmentados em relação uns aos outros, e cujo movimento entre Faixa de Gaza e Cisjordânia seria controlado exclusivamente por Israel, além do espaço aéreo, da economia, da política externa, dos recursos hídricos e das fronteiras, isto é, de toda a vida palestina.

O Mandela que existe em suas mentes esteve sempre disposto a comprometer sua própria justiça e dignidade. O Mandela verdadeiro, no entanto, rejeitou diversas “ofertas generosas” do governo do apartheid, incluindo adiantar sua soltura caso renunciasse à luta armada ou ainda desistir dos direitos de seu povo e confinar a si mesmo no bantustão de Transkei.

Proponentes da imagem de Mandela, o Piedoso, esqueceram-se que Madiba jamais desistiu de qualquer tópico que poderia comprometer seu objetivo final: a libertação do sul-africanos. Durante as negociações, ele e seus colegas (como os palestinos) frequentemente escolhiam nenhum acordo, ao invés de uma proposta que lhes concedia meramente o mínimo, em termos de dignidade e direitos humanos.

Israel nunca apresentou-se às conversas de paz, nas últimas duas décadas, para de fato negociar com os palestinos. Ao contrário, utilizou o processo de paz como joguete para manter os palestinos ocupados (literal e figurativamente), à medida que violentamente cria raízes para sua ocupação ilegal da Cisjordânia e agrava o cerco à Faixa de Gaza. Contudo, segundo essa lógica, enquanto existir o “processo de paz”, Israel poderá silenciar apelos por boicote. O diálogo será ainda mais difícil agora que os líderes israelenses discutem abertamente a anexação de terras ocupadas, admissão clara de que jamais pretendem consentir com um estado palestino.

Mais do que nunca, é preciso olhar para o legado de Nelson Mandela para tratar da questão palestina; não para pregar sobre perdão e reconciliação, mas sim para criar soluções políticas fundamentadas na justiça e na dignidade. A maior lição que Israel e seus apoiadores podem aprender com a vida de Mandela é que a paz, o perdão e a reconciliação virão apenas quando todos os povos desfrutarem da justiça, da liberdade, da dignidade.

Este artigo foi publicado na Al Jazeera, em 20 de julho de 2020

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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