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Covid-19 e crise do petróleo prenunciam o fim da hegemonia americana e do petrodólar

Torre de perfuração bombeia petróleo cru de uma área perto de Luling, Texas, Estados Unidos, em 20 de abril de 2020 [Dave Creaney/Agência Anadolu]

O impacto conjunto da guerra de petróleo entre Rússia e Arábia Saudita e da queda na demanda por petróleo cru durante a pandemia de coronavírus resultou no colapso do mercado de petróleo. Os preços mergulharam a abismos desconhecidos, de US$18 por barril a algo tão reduzido quanto menos US$40 por barril, segundo o West Texas Intermediate (WTI), referência no valor do petróleo dos Estados Unidos. Os preços do petróleo jamais estiveram negativos e, embora tenham voltado a zero ainda hoje, é bastante improvável que o mercado se recupere em qualquer futuro próximo.

Essa conjuntura levou centenas de produtores de petróleo dos Estados Unidos que investiram pesadamente na indústria de xisto à margem da falência; o mundo está inundado com petróleo mas não há demanda ou mesmo espaço para conservar o produto. Isso forçou comerciantes de petróleo a ter de pagar pessoas para que tirassem o produto de suas mãos.

Com o maior número de casos de coronavírus e mortes em todo o mundo, os Estados Unidos assumiu um lugar coadjuvante pouco característico na liderança global diante da crise. Seu status de superpotência foi exposto; a China deu um passo a frente para preencher o vazio ao lidar com o surto na Europa e Oriente Médio. O colapso inesperado dos mercados de petróleo podem ser o prego final no caixão da hegemonia americana, conduzindo ao fim do acordo de petrodólar entre Estados Unidos e Arábia Saudita. Talvez para manter a ilusão de grandeza americana, o Presidente Donald Trump brevemente tuitou, em caixa alta, a mensagem “EUA fortes!”, no início deste mês.

LEIA: Trump pode bloquear importações de petróleo saudita para salvar mercado dos EUA

O acordo saudita-americano data da década de 1970, após o fim do padrão de ouro de Bretton Woods, que previa taxas de câmbio estabelecidas em moeda de ouro, ironicamente no momento de ascensão dos Estados Unidos como diretriz da nova ordem econômica mundial, após a Segunda Grande Guerra. Quanto tornou-se evidente que o lento crescimento do fornecimento global limitava os gastos públicos e a inflação no momento de Guerra do Vietnã, além de uma persistente balança de débitos, o então Presidente Richard Nixon chocou o mundo ao dar fim ao padrão de ouro. Sob o novo acordo assinado com os sauditas, o petróleo só poderia ser comprado em dólares americanos, em troca de proteção e equipamento militar dos Estados Unidos.

Pensava-se que guerra no preço de petróleo entre Rússia e Arábia Saudita havia atingido seu ápice na última semana quando os dois países concordaram – junto de outros estados-membros do grupo conhecido como OPEP+ – a cortar a produção de petróleo, após pressão de Trump, que temia pelo impacto na economia americana. Embora o acordo para cortar cerca de dez milhões de barris por dia deva entrar em vigor no próximo mês, é possível que ocorra antes diante da atual situação. Entretanto, é evidente que alguns países afetados, como Arábia Saudita, postergaram demais projetos para diversificar suas economias com base quase exclusiva no mercado de petróleo.

Em março, o articulista Max Keiser do jornal Russia Today previu que o mercado de xisto dos Estados Unidos sofreria as consequências da guerra de petróleo, à medida que a Rússia – e não Arábia Saudita – saísse vitoriosa no campo geopolítico. É mais barato extrair petróleo na Rússia do que nos Estados Unidos e Moscou possui menor dívida externa do que os sauditas.

Segundo Keiser, o impacto da guerra do petróleo “será a completa evisceração da indústria de xisto americana, que precisará de um enorme socorro [do Estado] e de uma enorme emissão de moeda”. O dólar americano “sofrerá gravemente”, o que pode marcar o início de seu fim como moeda global de maior confiança e presença nos mercados internacionais. Obviamente, qualquer impacto negativo na economia dos Estados Unidos terá efeitos colaterais em outros países, incluindo nações produtoras de petróleo com grande dependência do produto em particular.

Uma nova guerra no Oriente Médio pode estar no horizonte, com as tensões entre Golfo e Irã. A última vez que um estado do Golfo – no caso, o Kuwait – produziu mais e mais petróleo, o resultado dizimou a economia do Iraque, assolado por conflitos, e levou à Guerra do Golfo. Qualquer ação para dispensar o dólar como moeda global não acontecerá sem embate de Washington.

Também pode significar que o acordo entre Estados Unidos e Arábia Saudita está terminado. De fato, os sauditas ameaçaram dispensar o dólar para seus acordos de petróleo no último ano, apesar dos últimos dois países que decidiram fazê-lo terem sofrido intervenções militares da OTAN como resultado. A Líbia de Muammar Gaddafi desejava que o comércio do país abandonasse de vez o dólar e voltasse a usar o dinar com base no ouro como referência. O Iraque de Saddam Hussein insistiu em rejeitar o dólar e trocar por euro no início dos anos 2000. A Arábia Saudita, portanto, está brincando com fogo e, diferente da Rússia, não possui dissuasão nuclear própria, além de terceirizar toda a sua defesa aos Estados Unidos.

É interessante notar que os Estados Unidos estão em situação similar ao Irã e à Venezuela, alvos comuns do terrorismo econômico americano. Diante de obstáculos constantes ao tentar negociar seus recursos naturais, ambos os países passaram a comercializar com sua própria moeda. Tragicamente, no entanto, apesar dos trilhões de dólares gastos pelo governo americano nas guerras no Oriente Médio, a fim de manter o controle do mercado de energia global e a supremacia do dólar, a moeda agora torna-se inútil – um enorme insulto às milhões de vidas perdidas nesse processo. O fim do petrodólar significará o fim de um era de hegemonia americana. Mas quem poderá substituí-los? É essa a questão.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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