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Como um evento sionista de ‘diplomacia espiritual’ tornou-se foco do covid-19 na África do Sul

Amostras de sangue positivas com coronavírus (covid-19) sobrepostas à bandeira de Israel, em 6 de abril de 2020, Izmir, Turquia [Mehmet Emin Mengüarslan/Agência Anadolu]

Entre 10 e 11 de março deste ano, centenas de convidados reuniram-se nos chamados Ministérios de Restauração Divina, nos subúrbios de Bloemfontein, capital da província de Estado Livre, na África do Sul, para comparecer ao Desjejum de Orações por Jerusalém (em inglês, JPB).

Segundo seu website, o JPB é um movimento de culto religioso que pretende reunir líderes políticos e cristãos para “responderem ao chamado de Deus e do Knesset [parlamento israelense] a todas as nações, para que orem pela paz de Jerusalém e prosperidade de Israel.”

O fim à ocupação ilegal de Israel sobre a Palestina não faz parte do chamado de fé.

Devotos viajaram de toda a África do Sul para participar dos diversos eventos que constituem a iniciativa pró-Israel supostamente religiosa, com apoio direto do Knesset israelense. Cerca de 480 pessoas compareceram ao evento de culto em 10 de março. Um grupo de 225 pessoas participaram de um evento de café da manhã no dia seguinte, e então de uma sessão de jantar e orações atendida por 160 pessoas.

Albert Veksler, coordenador do JPB, estava entre os dois israelenses, dois americanos e um cidadão francês que participaram do evento e foram diagnosticados como vetores do covid-19, embora não soubessem até então.

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‘Algo bastante importante aconteceu’

Veksler descartou o risco de coronavírus ao chamá-lo de “distração”. Chegou ao ponto de argumentar que realizar o JPB logo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar o covid-19 como pandemia representava uma “grande vitória”.

“Algo bastante importante aconteceu e somos testemunhas e participantes”, relatou Veksler à agência de notícias sul-africana Gateway News, de caráter cristão, em entrevista imediata ao encerramento do evento. Ele não estava errado.

Durante o JPB em Bloemfontein, participantes discutiram como mobilizar o sionismo na África do Sul utilizando igrejas e movimentos políticos, orações coletivas e refeições suntuosas a favor de sua causa. O que não sabiam até então é que entre tais instrumentos de propagação estava o coronavírus. Após o evento, os religiosos voltaram a se espalhar por toda a província de Estado Livre e outras localidades da África do Sul, levando consigo o covid-19.

Angelize de Lange, empresário de 57 anos, retornou a Joanesburgo. O reverendo Kenneth Meshoe, figura de destaque no evento, parlamentar e líder do Partido Democrata Cristão Africano (ACDP) regressou a seus deveres legislativos na Cidade do Cabo. Um casal de pastores voltou à província de Cabo Setentrional enquanto outros retornaram a Kwa Zulu-Natal e Cabo Ocidental. Líderes religiosos de todas as partes voltaram a suas congregações.

Em 16 de março, os cinco convidados estrangeiros foram testados para o covid-19 após o Presidente da África do Sul Cyril Ramaphosa anunciar que todos os turistas internacionais deveriam passar por exames antes de deixar o país. Todos os cinco testaram positivo. A pressa era então rastrear e testar toda e qualquer pessoa que estivera em contato com os religiosos.

Equipes de busca tiveram de expandir suas operações para além das fronteiras do Estado Livre a cinco outras províncias. Os esforços de rastreamento do Departamento de Saúde receberam assistência de centenas de voluntários da Cruz Vermelha, além de especialistas do Instituto Nacional de Doenças Contagiosas da África do Sul. Unidades de testes móveis foram enviadas ao Estado Livre para garantir exame a todos os membros das igrejas participantes.

“Sabíamos que era vital agir rapidamente no Estado Livre e mobilizar recursos à área para testes, buscas e imposição de quarentena em larga escala”, afirmou na ocasião Zerlini Mkhize, Ministro da Saúde da África do Sul. Em 2 de abril, Mkhize reportou que 1.600 das 1.700 pessoas que estiveram em contato com os infectados foram rastreadas e testadas em seis províncias distintas.

Consequência mortal

As consequências do encontro do JPB foram generalizadas e sem precedentes em termos de transmissão local. A província do Estado Livre não tinha um único caso de coronavírus antes do início do evento, em 10 de março. Em 31 de março, havia 74 casos – mais de 67 casos foram resultado direto do JPB. Em 8 de abril, chegou a 88 casos.

Seis dias após deixar o evento, Meshoe – sem saber que fora exposto ao covid-19 – reuniu-se com o Presidente Ramaphosa, o Vice-Presidente David Mabuza e líderes de diversos partidos políticos na Cidade do Cabo, para discutir a resposta sul-africana ao coronavírus. Isso levou a uma onda de testes entre líderes políticos. Ramaphosa testou negativo.

A Clínica Duduza, que atende a comunidades carentes no leste de Joanesburgo, foi fechada indefinidamente em 2 de abril após uma enfermeira testar positivo para a doença. A funcionária estivera presente no JPB de Bloemfontein.

O pastor Mohau Rammile representou os Ministérios de Reconciliação Global (GRM) no evento JPB e transmitiu o vírus a seu companheiro de congregação John Hlangeni, de 86 anos. Hlangeni morreu em 30 de março. Em 8 de abril, conforme a África do Sul entrava em seu 13° dia dos 21 dias de isolamento, Mondli Mvambi, porta-voz do Departamento de Saúde do Estado Livre, confirmou as mortes de Willen van Tonder, de 76 anos, e Frans Thafeni, de 55 anos. Ambos ligados ao JPB.

O evento JPB é um exemplo de caso de “super-disseminação”, pois muitos que participaram tiveram contato posterior com um grande número de pessoas, ao retornar para casa.

Com os altos índices de desemprego e pobreza, além dos surtos de HIV e tuberculose, em comunidades em torno de Bloemfontein – portanto, alto número de pessoas imunossuprimidas –, este episódio mostrou-se catastrófico para todo o Estado Livre. Boa parte da população local vive em comunidades superlotadas e assentamentos informais, onde a distância social e o isolamento são difíceis ou quase impossíveis de realizar, além de condições precárias de saneamento.

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A ‘diplomacia espiritual’ de Israel na África

A pergunta central: por qual razão os organizadores israelenses estavam tão desesperados para realizar o JPB na África do Sul a despeito da pandemia de coronavírus? A resposta reside na necessidade urgente de Israel em descobrir novos amigos.

Carinhosamente descrito como “encontro de congregações” pela imprensa sul-africana, com manifesto missionário temperado por referências bíblicas, o Desjejum de Orações por Jerusalém alega que seu propósito é apenas orar pela paz. Na realidade, o JPB – disfarçado em vestes religiosas – é parte vital do esforços políticos de Israel para exercer seu lobby no continente africano.

Albert Veksler, diretor do encontro, liderou o Lobby de Empoderamento de Israel (IEL) entre os anos de 2012 e 2014. Elemento fundamental das operações do IEL é a chamada “diplomacia espiritual”, que promove a crença comum de muitos cristãos – em particular, evangélicos e neopentecostais – de que o Estado de Israel é especial aos olhos de Deus e realização de profecias bíblicas.

Veksler utiliza agora o JPB como meio de capitalizar sobre o papel central de Israel no cristianismo, especialmente na África. À medida que Israel enfrenta críticas internacionais cada vez maiores por sua ocupação militar da Palestina, cresce também a comparação com o apartheid da África do Sul, de modo que as ações de Veksler mostram-se convenientes.

Israel teve de procurar além de seus aliados ocidentais tradicionais para obter apoio neste contexto. O governo do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu voltou-se à África Subsaariana para tentar compor novas alianças, combater a campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e angariar apoio nas Nações Unidas.

Por toda a África, Israel utiliza como ferramenta seu lobby cristão evangélico para espalhar propaganda, neutralizar críticas sobre violações de direitos humanos e ganhar simpatia e lealdade internacional. A parceria israelense com igrejas africanas é parte de esforços diplomáticos continentais voltados a dissolver o apoio histórico das populações da África à causa palestina por autodeterminação e justiça. Portanto, o JPB não apenas ora, mas de fato exerce lobby político.

Gana sediou o primeiro encontro do JPB na África em setembro de 2018. Em maio de 2019, o movimento avançou para o leste africano e Uganda. Cientes do valor político e moral da África do Sul no continente, carentes de obter terreno na África meridional e neutralizar, portanto, os progressos do movimento de boicote, o JPB foi levado então a Bloemfontein em 2020.

Tel Aviv estava então em desespero, ao passo que o governo sul-africano deu início a um processo de distanciamento cada vez maior nas relações com Israel. Nem mesmo uma pandemia sem precedentes como o coronavírus seria capaz de impedir os militantes sionistas de tentar ganhar qualquer terreno na África do Sul.

Israel já possui uma história tóxica na África do Sul. Mas sua insistência desesperada em exercer lobby após lobby no país e realizar assim o Desjejum de Orações por Jerusalém durante a pandemia de coronavírus mostrou-se mortal.

A ocupação brutal de Israel sobre a vida do povo palestino e sua abordagem de estado recorre habitualmente a sacrificar o próximo. Em Bloemfontein, os sul-africanos vivenciaram este fato em primeira mão.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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