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O governo reconhecido pela ONU na Líbia tornou-se uma dor de cabeça para o Ocidente

Manifestantes reúnem-se em apoio ao Governo de União Nacional da Líbia, reconhecido pela ONU, na capital Trípoli, 27 de dezembro de 2019 [Hazem Turkia/Agência Anadolu]

Em 17 de dezembro de 2015, o Acordo Político Líbio foi assinado em Skhirat, Marrocos, para a euforia das grandes potências, agentes regionais e vizinhos imediatos da Líbia; foi então celebrado como um grande avanço, ao aparentemente colocar a Líbia no caminho da redenção. Em cerimônia conduzida pelo Ministro de Relações Exteriores do Marrocos, todos mostraram-se felizes que a Líbia finalmente teria um governo e começaria a reconstruir-se, após quatro anos de destruição e massacres.

O acordo criou um Conselho Presidencial de nove membros e o autorizou a estabelecer o chamado Governo de União Nacional. Esta coalizão, a princípio, seria uma autoridade provisória com uma agenda de transição capaz de incluir a elaboração de uma nova constituição, organizar eleições e refrear o fluxo de imigrantes ilegais à Europa, além de governar a Líbia.

Uma semana depois, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 2259 em reconhecimento do Governo de União Nacional como único governo legítimo no país africano e concedendo a ele o controle sobre os impressionantes recursos de exportação de petróleo da Líbia. A votação foi unânime. Entretanto, conforme o Artigo 4 do Acordo Político Líbio, o Governo de União Nacional somente obteria legitimidade após ganhar a aprovação da Câmara dos Representantes. O corpo legislativo, afinal, fora signatário do acordo mediado pela ONU que criou a junta de governo.

Apenas algumas horas após a cerimônia no Marrocos, tais parlamentares – que assinaram em nome da Câmara dos Representantes – rejeitaram publicamente o acordo, ao alegar que foram enganados para assiná-lo. O poder legislativo negou ao Governo de União Nacional o voto de confiança por duas vezes distintas, tornando suas operações na Líbia, portanto, ilegítimas e ilegais.

No plano de fundo, forças leais ao General Khalifa Haftar adquiriram presença na porção oriental do país, ao obter ganhos territoriais a partir de uma série de organizações islâmicas distintas, as quais dominavam Benghazi e grande parte dos territórios vizinhos. O próprio Haftar jamais aceitou o Governo de União Nacional, tampouco o acordo que o estabeleceu. Haftar continuou a lutar e, em abril último, investiu contra os subúrbios da capital Trípoli, alegando – por vezes, corretamente – que o Governo de União Nacional é controlado por milícias e deve ser deposto.

Uma vez estabelecido, o Governo de União Nacional transferiu-se para a Tunísia e passou a considerar os meios pelos quais poderia criar um governo na Líbia e retomar Trípoli. Naquela ocasião, quatro anos haviam se passado desde que o Ocidente e as Nações Unidas – liderados pela OTAN – decidiram desastrosamente utilizar a força para depor o governo do ditador Muammar Gaddafi, que resultou em sua morte, em outubro de 2011. A Líbia, desde então, tornou-se um campo de batalha.

Muammar Gaddafi, ex-ditador da Líbia [Wikipedia]

Trípoli foi controlada por diversas milícias, a maioria das quais rejeitavam o Governo de União Nacional e o impediram de entrar na capital até março de 2016. Testemunhei as complicadas negociações da época, conduzidas por uma das milícias que então apoiava a ideia de ter a junta de governo instalada em Trípoli. Paolo Serra, conselheiro militar da ONU para a Líbia, demorou três meses para convencer as principais milícias no país a permitir a entrada do Governo de União Nacional na capital. Enfim, em 16 de março de 2016, a junta de governo conseguiu estabelecer-se em uma base naval inoperante na zona leste de Trípoli.

Tal movimento mostrou-se mais outro erro cometido pela ONU, pois entregou o governo líbio diretamente às mãos dos grupos paramilitares. No momento, o Governo de União Nacional era – em grande parte, ainda é – carente de exército ou força policial, incapaz de proteger a si mesmo. A junta de governo permaneceu na base naval por quase um ano, impedida de mover sua sede sequer alguns quilômetros em direção ao centro da capital. As milícias locais queriam algo em troca para permitir que o Governo de União Nacional transferisse seu quartel-general de Tariq El-Sika. Receando perder controle, as milícias surgiram então com a ideia de tornarem-se parte do próprio governo. O Governo de União Nacional então assentiu e as milícias oficialmente tornaram-se parte dos ministérios de interior e defesa, efetivamente mantendo todo o poder em solo. O Governo de União Nacional – bastante debilitado – não teve alternativa senão aceitar tais concessões e apressar sua execução. Conforme passou-se o tempo, tornou-se claro que a principal prioridade do Governo de União Nacional era controlar os processos migratórios em direção à Europa, além de combater o Estado Islâmico (Daesh) na região de Sirte. Entretanto, com o domínio das milícias sobre o Governo de União Nacional, a migração ilegal de fato intensificou-se e o Daesh ocupou mais e mais territórios ao longo da costa, ameaçando a produção e exportação do petróleo líbio.

Tarde como de costume, o Ocidente, que tanto apoiou e reconheceu o Governo de União Nacional na Líbia, começou a perceber seus erros. Aparentemente, alguns países ocidentais – em particular, França, Itália e Estados Unidos – passaram a reivindicar a instalação e legitimação do Governo de União Nacional apenas para alegar que possuíam um parceiro na luta contra a migração ilegal e as organizações terroristas na Líbia. O Governo de União Nacional viu-se forçado a conceder bênção a milícias sobre as quais possuía pouco ou nenhum controle. A coalizão de grupos paramilitares que expulsou o Daesh de Sirte foi reconhecido como o exército do Governo de União Nacional, embora fosse apenas uma milícia independente que lutou contra os extremistas por seus próprios interesses, e não em nome da Líbia.

Deste modo, servir a população da Líbia tornou-se cada vez menos importante para o Governo de União Nacional. As condições de vida, mesmo na capital Trípoli, declinaram mais e mais. O custo de vida aumentou vertiginosamente, a liquidez bancária tornou-se mais escassa dia após dia, horas de blecaute triplicaram e a segurança apropriada para os cidadãos líbios simplesmente não existia. O Governo de União Nacional não era capaz de funcionar adequadamente, mesmo se quisesse, simplesmente porque era – ainda é – refém das milícias. Ao dominar os departamentos de governo, as milícias passaram a obter ganhos financeiros por meio de diversos esquemas, principalmente negócios de importação-exportação, embora também recebessem honorários pagos pelo governo.

Ao invés de tornar-se uma autoridade interina, o Governo de União Nacional ainda está presente, quatro anos a mais do que deveria estar. Sob pressão das forças de Haftar, que controlam grande parte do país, o Governo de União Nacional aceitou a oferta de apoio militar da Turquia e assinou o acordo de segurança com Ancara em 27 de novembro de 2019. Os europeus não puderam fazer nada a respeito, embora tenham repudiado o avanço turco. Em termos de legitimidade internacional, o Governo de União Nacional é reconhecido pela ONU e pode estabelecer acordos com outros países, o que efetivamente ocorreu no acordo com a Turquia. Europa e Estados Unidos foram tomados de surpresa, e não puderam contestar legalmente o fato de que a Turquia agora envia armas e combatentes para auxiliar o Governo de União Nacional contra as forças de Haftar. Vale lembrar que Europa e Estados Unidos criaram esta entidade, em primeiro lugar. Com a guerra na Líbia agora envolvendo diversos agentes estatais estrangeiros, livrar-se do Governo de União Nacional sem uma alternativa confiável é perigoso e bastante embaraçoso politicamente.

A ONU e o Ocidente estão agora diante de uma armadilha criada por eles mesmos. Diante dos esforços para livrar-se desta arapuca, tornou-se mais fácil dizê-lo do que fazê-lo, pois a Turquia – não a ONU – estabeleceu sua própria vantagem sobre o governo em Trípoli.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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