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Mohamed Ali, o homem da sala de operações do Egito

Mohamed Ali, produtor cultural e investidor imobiliário egípcio [Facebook]

Mohamed Ali, de 45 anos, é um ator amador e investidor imobiliário cuja companhia esteve envolvida em investimentos do Exército do Egito por quinze anos, até ocorrer uma disputa sobre alguns milhões de dólares. A controvérsia resultou em seu exílio na Espanha, levando consigo o que restou de sua fortuna, além de um anseio particular para expor seus adversários e ex-aliados nas redes sociais.

Em seu primeiro vídeo, Ali enfatizou que seu problema financeiro não tinha nada a ver com política. Após garantir o aumento no número de seguidores nas redes sociais, Ali passou a negar todo e qualquer envolvimento com política e declarou que planejava expor o governo pelos últimos seis anos e, somente então, decidiu enfrentar seus opositores militares. Ali chegou a sugerir que há membros do Exército que de fato o apoiam. Toda essa conjuntura levou o povo egípcio a escorar-se em seu discurso, como um último recurso de esperança diante do governo repressivo, para então tomar as ruas em protesto. A questão parecia inclinada na direção de uma revolução apavorante; no entanto, dissipou-se e os manifestantes foram surpreendidos pelo enorme número de indivíduos presos sob pretexto das manifestações. Enfim, Ali recuou e admitiu não possuir qualquer cobertura do Exército e estar trabalhando sozinho.

Mohamed Ali representou a si mesmo como um fugitivo sob ameaça de morte, então passou a justificar seu exílio por morar agora em uma país seguro que respeita os direitos humanos. Então anunciou uma turnê pela Europa e Estados Unidos para recuperar e alcançar sua plena relevância.

Jornais internacionais de larga escala relataram que Ali expôs os trabalhos internos do regime egípcio; isto é, sua sala de operações.

As salas de operações de qualquer governo são justamente os locais onde se tomam as decisões. Mohamed Ali não revelou segredos relevantes que já não fossem de conhecimento público. Os cidadãos comuns sabem muito bem que as áreas vitais no coração do Cairo estão à venda para todo e qualquer investidor árabe. Residentes locais também sabem da existência de um fundo de soberania nacional, à mercê somente dos anseios do Presidente da República. E estão bastante cientes das decisões tomadas pelo Exército para ocupar terras e instalações, das acusações fabricadas contra empresas e corporações, de alegações infundadas de participação em grupos terroristas, e assim por diante.

A imprensa internacional também considera Mohamed Ali um herói como nenhum antes.

Isso não é verdade; aqueles que o antecederam mantiveram acesa a chama da revolução. Desde os primeiros momentos do golpe de estado comandado por Abdel Fattah al-Sisi, apoiadores do presidente legitimamente eleito Mohamed Morsi reagiram com enormes manifestações pacíficas em memória da revolução, reprimidas por meio de verdadeiros massacres, além de aprisionamento em massa, destruição de casas e opressão imposta a comunidades minoritárias e aldeias. Páginas das redes sociais também foram silenciadas, à medida que expunham o líder do golpe e seu governo.

Produtor cultural e investidor imobiliário Mohamed Ali Abdel Khaleq em coletiva de imprensa organizada pelo Observatório do Egito, em Londres, Reino Unido, 20 de novembro de 2019 [Monitor do Oriente Médio]

Enquanto isso, forças civis que apoiaram o golpe de 30 de junho de 2013, antes derrotadas, acusaram o falecido presidente Morsi de fraqueza e destacaram supostos fracassos de seu grupo político diante dos processos de paz. Tai forças concentraram-se em dispersar e exaurir os apoiadores de Morsi ao conclamar uma abordagem que apaga o período histórico entre 2012 e 2019 e fornecer uma solução similar àquela da revolução sudanesa – isto é, obter pleno controle do governo e excluir os partidos islâmicos do trabalho político. Tais forças compreenderam, ao longo dos últimos anos, diversas iniciativas e figuras públicas, como os atores Amr Waked, Khaled Abu Al-Naja e (mais recentemente) o próprio Mohamed Ali, considerado um modelo mais avançado do que seus predecessores.

Redes de notícias o representam como um homem que expôs todo um sistema com somente uma câmera de celular. Reafirmo que não há ninguém capaz de atingir este grau de exposição sem apoio direto ou indireto. Por exemplo, Massaad Abu Fager, que expôs as operações do Exército no Sinai, apareceu no cenário público ao mesmo tempo em que Ali, assim como Tamer Gamal – ativista político que liderou uma tentativa de revolta –, mas nenhum deles obteve um quarto da cobertura de Ali. Por acaso, não devemos nos perguntar por qual razão a imprensa internacional decidiu abrir suas portas a Mohamed Ali, à medida que trataram com descaso os apoiadores da Irmandade Muçulmana e do Presidente Morsi, difamados pelo golpe de estado e reprimidos pelo regime de Sisi?

A ascensão de Mohamed Ali levanta muitas dúvidas, em particular para aqueles que sabem muito bem como uma pessoa torna-se emergente e influente nos círculos da elite ao trabalhar com a inteligência e o exército nacional por quinze anos. É possível que tenha se virado contra seus antigos aliados por apenas alguns milhões de dólares? Muitos empresários egípcios também perderam suas finanças de modo trágico e não fizeram nada parecido. Deste modo, a insurreição de um deles, como vista hoje, não pode ser tão inocente!

Em resumo, será mesmo aceitável para a oposição no Egito ser levada a reformas por um homem com histórico de corrupção financeira e pensamento político superficial? Mohamed Ali adotou a frase “Somos todos corruptos” como seu slogan, a fim de não ser culpabilizado por seu próprio passado; na prática, desta forma, comete um crime moral contra a revolução e a sociedade. Ali não seguiu qualquer plataforma eleitoral de qualquer candidato à presidência em 2012; ainda hoje, alega que nenhum deles foi capaz de lhe convencer! Ali propõe agora um programa de governo que representa a fase pós-Sisi no Egito; contudo, não tem a menor ideia do que fala ao abordar um governo parlamentar.

Mohamed Ali escolheu seus próprios especialistas de governo e propôs um mecanismo eletrônico para referendos populares que já mostrou-se falho em ocasiões passadas. A questão permanece: Mohamed Ali apresentará seu programa como uma alternativa ou uma resolução definitiva e factual que garante a hegemonia de sua ideologia e daqueles que liderarão o Egito após a queda de Sisi? Será que não percebe que decidiu substituir uma ditadura por outra?

O que a chamada oposição civil representa é de fato um escárnio, ao converter a revolução em uma espécie de oposição frágil que endurece as ações do governo golpista no Egito e afasta cada vez mais aqueles simpáticos às causas populares. Após tanto falar da perseverança dos heróis aprisionados e dos rebeldes que continuam a se manifestar contro o golpe, todos e todas começaram a conclamar nada mais que o homem na sala de operações, muito bem capaz de administrar sua eventual presidência sob proteção internacional.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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