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Abu Ubaida: a voz que transcendeu a imagem

31 de dezembro de 2025, às 05h55

Abu Obeida, porta-voz das Brigadas Izz al-Din al-Qassam, braço armado do movimento palestino Hamas, durante pronunciamento em Rafah, no sul de Gaza, em 31 de janeiro de 2017 [Ali Jadallah/Agência Anadolu]

As Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, braço armado do Movimento de Resistência Islâmica Hamas, anunciaram o martírio de seu porta-voz militar histórico, conhecido mundialmente como Abu Ubaida. 

A confirmação de que se tratava de Hudhaifa Samir Al-Kahlout não revela um rosto, revela uma trajetória. Por mais de duas décadas, sua voz foi trincheira, sua palavra foi arma política. Em um tempo de extermínio televisionado, cerco permanente e silêncio cúmplice das potências, Abu Ubaida foi presença constante, firme e inapagável.

O keffiyeh vermelho que o cobria jamais foi um adereço estético. Tornou-se um signo reconhecido por povos livres em diferentes latitudes, condensando disciplina revolucionária, abnegação e clareza política. 

Ao descrevê-lo como “o homem mascarado amado por milhões”, o novo porta-voz das Brigadas não evocou um fetiche midiático, mas a ética profunda da resistência palestina: ninguém acima do povo, ninguém maior que a causa, nenhuma biografia acima do projeto coletivo de libertação.

Desde o início do novo milênio, Abu Ubaida consolidou uma forma singular de comunicação política em guerra. Em cada ofensiva contra Gaza, sua aparição não era um detalhe do conflito, mas um acontecimento em si. 

A voz grave, precisa e sem excessos combinava informação militar, firmeza psicológica e pedagogia política. Não prometia milagres nem vendia ilusões; anunciava posições, explicava escolhas, assumia responsabilidades. Falava aos palestinos — e ao mundo — com a serenidade de quem conhece o custo da luta e não foge dele.

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Nascido em Na’alia, nas proximidades de Ashkelon, Al-Kahlout teve a vida marcada cedo pelo deslocamento forçado, marca indelével da Nakba contínua. Sua família se estabeleceu no campo de refugiados de Jabalia Refugee Camp, no norte da Faixa, onde a história palestina segue sendo escrita sob cerco, bombardeio e resistência.

Em 2013, concluiu mestrado pela Universidade Al-Azhar em Gaza. Sua dissertação — A Terra Santa entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo — evidenciava um interesse intelectual profundo pelas raízes históricas, políticas e religiosas do conflito, distante de leituras simplistas ou conciliatórias.

Apesar da projeção midiática global, manteve a vida privada longe dos holofotes. Pai de quatro filhos, fez do anonimato uma prática política consciente. Procurado desde 2002, quando assumiu oficialmente a função de porta-voz das Brigadas, foi alvo permanente do exército israelense, que tentou silenciá-lo repetidas vezes por meio de assassinatos seletivos. 

Não conseguiu. Sua voz atravessou batalhas, cercos e massacres, sempre presente quando a verdade precisava ser dita e a narrativa da resistência precisava se impor contra a propaganda da ocupação.

Sua identidade jamais foi um segredo no cotidiano do acampamento, entre vizinhos e na mesquita onde rezava. O véu — a khufiah — não era ocultação por medo, mas escolha política: símbolo de resistência, de disciplina e da primazia do coletivo sobre o indivíduo. 

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Em um mundo que idolatra rostos, mercantiliza biografias e transforma a guerra em espetáculo, Abu Ubaida recusou o culto ao eu.

Por mais de vinte anos, cada aparição sua em discursos televisionados, comunicados escritos ou mesmo breves mensagens digitais, transformava-se em um acontecimento midiático de grande impacto. 

Seu nome liderava listas de assuntos mais comentados na Palestina, no mundo árabe e, por vezes, globalmente. Não se tratava apenas de carisma, mas de uma equação rara: ambiguidade total da personalidade, rigor absoluto no tempo das intervenções e precisão cirúrgica da linguagem. Cada palavra era medida; cada silêncio, calculado.

Por isso, o anúncio de seu martírio não foi recebido como a perda de uma figura midiática, mas como a ausência de uma voz que, por anos, fez parte da memória coletiva palestina. 

Seu martírio não encerra um ciclo, mas o amplia. Tentaram apagar um homem; consolidaram um símbolo. E símbolos que nascem do povo, forjados na luta e na dignidade, não morrem. Permanecem.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.