Antes da guerra, al-Amin Idriss Mohammed jamais havia pegado em armas, jamais sentira o peso de um rifle em suas mãos.
Uma tempestade, no entanto, se aproximava.
No final de 2023, batedores das Forças de Suporte Rápido (RSF) costumavam passar de motocicleta pela aldeia de al-Tekeina, no estado de al-Jazira, no centro do Sudão, atentos em busca de recursos valorosos.
Soldados do exército regular, contudo, eram uma visão rara. Ficou claro que defender al-Tekeina não seria uma prioridade para as Forças Armadas.
A aldeia decidiu agir por conta própria. Mohammed, homem alto de ombros largos, de 41 anos, eram um comerciante que, como a maior parte da classe média local, se envolvia ocasionalmente na agricultura.
Agora, caminha e fala com a calma e firmeza de um oficial militar, líder de um batalhão de guerrilha autodidata, que armou a si próprio, e que, uma e outra vez, repeliu milicianos de al-Tekeina enquanto outras aldeias caíam por terra.
“Jamais recebi qualquer treinamento militar, mas tive que defender minha casa”, declarou Mohammed ao Middle East Eye. “Agora, sei usar todo tipo de arma leve e pesada. Aprendi a disparar um morteiro ao ver vídeos do YouTube.”
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Al-Tekeina é o tipo de aldeia que tem mais carroças puxadas por burros do que veículos a motor. Muros baixos e vielas circundam pátios privados onde visitantes tomam seu café forte e rubro sob a sombra das árvores. A leste, casebres e juncos às margens do rio Nilo Azul. Pequenos pesqueiros nadam contra a corrente.
A guerra civil no Sudão eclodiu em abril de 2023, quando planos de integrar as milícias da RSF ao exército saíram pela culatra, devastando o país, matando dezenas de milhares e deslocando ao menos 12 milhões de pessoas.
A princípio, os residentes de al-Tekeina pensaram que o conflito continuaria distante. Em sua aldeia, imaginavam, havia pouco a saquear. Para eles, o combate estaria concentrado nos centros urbanos, como Cartum. Todavia, relatos surgiram de atrocidades da RSF em áreas remotas de Darfur, com centenas de pessoas chacinadas e violência sexual como arma de guerra.
Residentes de al-Tekeina, como a maior parte de seus vizinhos, apoiaram o exército invés das milícias, ao enxergar o primeiro como instituição nacional, apesar de seu conturbado histórico de golpes, ditaduras e conflitos.
Não obstante, embora al-Tekeina fosse uma aldeia rural, situa-se ao longo de uma estrada pavimentada, que corre junto ao Nilo Azul, rumo à capital Cartum, cinquenta quilômetros ao norte.
No final de 2023, as milícias avançavam. Em 18 de dezembro, capturaram Wad Madani, a capital do estado de al-Jazira, abrindo as portas ao restante do território. Espreitavam al-Tekeina os horrores da guerra.
‘A ordem era lutar até o fim’
Magd Omar Mohammed Ibrahim é membro do comitê de resistência popular da aldeia de al-Tekeina, órgão eleito que governa os aldeões.
“Comecei a cavar trincheiras e fechar as estradas”, relembrou Ibrahim. “Combatentes de motocicleta, às vezes, vinham e começavam um tumulto, mas éramos capazes de resistir com as pistolas que tínhamos. Mesmos os meninos tacavam pedras neles”.
Conforme cresciam os receios de escalada, al-Tekeina não vacilou. Residentes passaram a coletar madeira, equipamentos agrícolas, caixas e portas — tudo que pudesse servir de barricada. Estranhas trincheiras ainda marcam as entradas, testemunhas das defesas de mão própria de seus aldeões.
Jovens rapazes receberam treinamento. Um apelo ecoou à diáspora da aldeia, para que mandassem dinheiro a suas famílias. Boa parte dos recursos serviu para comprar armas, que segundo Ibrahim, não foram difíceis de adquirir: “Compramos das próprias milícias … Fazem qualquer coisa por dinheiro”.
Em 24 de maio de 2024, a RSF enfim chegou em al-Tekeina. Dezenas de veículos armados afluíram pela estrada principal, ao circundarem a aldeia. Às dez horas da manhã, os tiros retumbaram, implacáveis até as seis da tarde.
“Sabíamos que era um momento crítico”, notou Ibrahim. “Pusemos nossas mulheres em nossos barcos e as levamos ao outro lado do Nilo Azul, com bastante comida”.
Al-Tekeina foi bombardeada por três dias. Vinte e dois habitantes morreram. “A ordem era lutar até o fim e não deixar ninguém entrar em nossa aldeia”, destacou Ibrahim. Quarenta pessoas ficaram feridas: “Formamos uma equipe médica. Embora houvesse somente um punhado de socorristas, trabalharam duro, em turnos, para salvar suas vidas”.
Eventualmente, os ataques minguaram — e um cerco de seis meses começou.
Apesar de sitiada pelo inimigo, al-Tekeina encontrou meios de sobreviver. A diáspora não parou de mandar dinheiro, coletado em Shendi, a 170 km ao norte, e então utilizado para comprar comida e suprimentos médicos contrabandeados ao longo do rio.
“Comíamos uma refeição por dia”, reiterou Ibrahim. “Uma cozinha comunitária preparava comida e distribuía às pessoas, incluindo aos homens que faziam as barricadas, que não podiam, jamais, ser deixadas desassistidas”.
Eventualmente, al-Tekeina e as unidades paramilitares chegaram a um acordo: as milícias poderiam utilizar a estrada principal e estabelecer três postos de controle ao longo dela, desde que a aldeia fosse deixada em paz. “Se um soldado deles cruzasse uma barricada, tínhamos o direito de matá-los”, apontou Ibrahim. “Nossa gente podia sair e pastorear os rebanhos, sem o risco de assédio”.
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O acordo funcionou e, embora al-Tekeina seguisse atenta, tensões e perigos pareciam um pouco mais distantes.
A calmaria foi breve. Abu Aqla Keikel, comandante das Forças de Defesa do Sudão, milícia então alinhada à RSF, desertou ao exército no fim de outubro de 2024. Em sua retaliação frenética, a coalizão paramilitar alvejou a região de al-Jazira, ao presumirem ligações com Keikel e seus homens.
Os ataques se espalharam de aldeia e aldeia nos dias e semanas seguintes. Em meados de novembro, centenas de refugiados das comunidades vizinhas começaram a chegar em al-Tekeina, em fuga dos massacres. “A situação era ruim. Havia muitas mulheres, muitas crianças, idosos, feridos, doentes, pessoas com deficiência”. Todos forçados a deixar sua terra e viajar ao relento para sobreviver.
“Quando chegavam aqui”, prosseguiu Ibrahim, “estavam quase desmaiando, sem comer ou beber nada havia dias. Dávamos somente um pouco de água com açúcar e sal, e pão, porque a situação era perigosa, com tanta gente faminta”.
O censo de 2010 estimou a população de al-Tekeina em torno de 500 pessoas. De acordo com Ibrahim, centenas chegaram das aldeias próximas após os ataques. “Montamos 200 tendas e abrimos 20 cozinhas comunitárias”. Ibrahim estimou os custos em 435 milhões de libras sudanesas, ou US$200 mil no total, para receber os deslocados.
Em dezembro, a RSF voltou a al-Tekeina. “Desta vez, éramos dois exércitos: combatentes de al-Tekeina na vanguarda, com artilharia pesada, e os habitantes das outras aldeias na retaguarda, com armas leves”.
O combate mais duro incidiu ao norte, em uma área desde então conhecida como “bairro das batalhas”. Suas cicatrizes ainda tomam os muros da região.
Mohammed, comandante local, indica em tom de triunfo as margens do rio, onde matou dois oficiais paramilitares. “Nós os emboscamos das árvores, aqui. Tenho orgulho do que fiz. Graças a nossa mobilização e nossa indignação frente aos agressores, fomos capazes de derrotá-los”.
Dentre os defensores de al-Tekeina, estava Abdul Rafet Babakir, de 28 anos de idade, que havia retornado dos Emirados Árabes Unidos, onde estava trabalhando, para visitar seus parentes, quando al-Tekeina foi atacada pela primeira vez. Abdul decidiu ficar no Sudão, para proteger sua terra, Em novembro, quando as milícias avançaram novamente, correu para a vanguarda.
“Quando ouvimos os sons de tiros, Abdul pegou um fuzil Kalashnikov e falou para nós nos escondermos e nos abrigarmos”, comentou Ibrahim Babakir, seu pai. “Eu o encorajei e o apoiei em defender seu povo. Mesmo que quisesse, não poderia impedi-lo”.
Ibrahim estava abrigado junto dos idosos quando soube que seu filho fora morto: “Chorei, gritei, ‘Deus é grande, Deus é grande’. Tenho orgulho de meu filho, que morreu um mártir. Tomou um tiro de bala no seu coração”.
Al-Tekeina, contudo, não cedeu — não sem custo: trinta mortos, cinquenta feridos.
‘Jamais entregaremos nossas armas’
As Forças de Suporte Rápido foram embora. Quando o exército chegou, foi recebido com clima de festa. Persevera, no entanto, uma dura mágoa: a aldeia se sentiu abandona pelo exército e pelo governo.
“Temos de dizer que o Estado nunca nos apoiou em nada — comida, armas, remédios — nada”, ressaltou Magd Omar Mohammed Ibrahim. Os feridos ainda demandam cuidados, mas tudo organizado e pago pela comunidade. “O governo não se importa com sua gente. Sentimos que o governo local está nos ignorando, de propósito, para dizer quem manda, porque outras aldeias recebem serviços”.
Após a retomada de al-Jazira pelo exército regular, o comitê de resistência popular de al-Tekeina escreveu uma carta com demandas ao governador. Por exemplo, reivindicou que representantes da aldeia fossem integrados à gestão, com um distrito próprio. “Até então, não tivemos resposta, nem mesmo para dizer que leram a mensagem”.
Quanto às armas usadas pela aldeia para derrotar os milicianos, estão estocadas em um lugar secreto. Oficiais pedem desarmamento das organizações populares, mas al-Tekeina se recusa a abrir mão. “Compramos as armas com nosso dinheiro, quando o governo nos abandonou”, concluiu Ibrahim. “Jamais entregaremos nossas armas”.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 29 de agosto de 2025
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