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De Wembley a Gaza: Quando a narrativa palestina supera a ocupação

21 de setembro de 2025, às 06h29

Sama’ Abdulhadi e Jamie XX durante performance ao Together For Palestine, evento beneficente na Wembley Arena, em Londres, em 17 de setembro de 2025 [Samir Hussein/WireImage for ABA]

Na noite de quarta-feira, 17 de setembro, em Londres, algo extraordinário aconteceu. Em torno de 12.500 pessoas lotaram a Wembley Arena para acompanhar 69 artistas e figuras públicas que angariaram cerca de US$2 milhões a Gaza em um evento de cultura. Porém, a verdadeira importância pouco repousa no dinheiro, mas em romper um medo de longa data: o tabu tácito de dizer “Palestina” nos palcos ocidentais.

A força motriz por trás do Together For Palestine, evento histórico, foi Brian Eno, renomado músico e produtor conhecido por suas colaborações com David Bowie, David Byrne, U2 e outros. Eno passou um ano trabalhando com colegas para fazer o show acontecer, apesar de sucessivas negativas de locais e plataformas, uma vez que ouviam o termo “Palestina”. Em artigo à véspera do evento, Eno expressou esperanças, no entanto, de que a iniciativa pudesse ecoar o impacto do concerto em homenagem aos 70 anos de Nelson Mandela, em 1988, contra o apartheid, também realizado em Wembley.

O espetáculo precursor, organizado por Tony Hollingsworth, foi transmitido ao vivo a cerca de 600 milhões de pessoas em todo o mundo, apesar de feroz oposição de conservadores britânicos e relutância da estatal BBC, que insistia em rotular Mandela como “terrorista”. O evento, contudo, consagrou Mandela em símbolo global por justiça e mobilizou maior pressão pelo fim do apartheid. Como explicou Eno, a cultura costuma preceder a política: as histórias que os artistas contam dão nova forma ao espaço ético e social, no qual os políticos têm de operar.

Os paralelos com Gaza são notáveis. O Together For Palestine contou com um elenco de peso, inimaginável um ano atrás: os atores nomeados ao Oscar Benedict Cumberbatch e Guy Pearce; músicos recordistas de venda, como Bastille, James Blake, PinkPantheress e Damon Albarn, do Gorillaz; e artistas palestinos, como Saint Levant e Elyanna. A primeira fala coube a Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os territórios ocupados, sancionada pelo governo americano de Donald Trump por sua firme denúncia dos crimes de Israel.

Por décadas, no Ocidente, o vernáculo milenar “Palestina” tem sido associado, de forma deliberada, com “terrorismo”, como parte de uma campanha para deslegitimar a causa. Artistas que ousaram nadar contra a maré sofreram censura e retaliação: Jonathan Glazer, diretor de Zona de Interesse, foi alvejado por citar Gaza ao vencer o Oscar por seu longa-metragem sobre o Holocausto; a atriz Melissa Barrera perdeu o papel de protagonista na franquia Pânico por falar em “genocídio”; exposições na Alemanha foram canceladas; a BBC se negou a transmitir um documentário sobre os médicos de Gaza, então exibido no Canal 4.

Esta campanha de terror e perseguição foi projetada precisamente para tornar a Palestina algo indizível. Wembley, no entanto, mostrou as rachaduras no medo. De fato, o silêncio parece enfim ser maior risco à reputação de artistas renomados do que o oposto.

A história nos mostra quão rápido tabus implodem. Uma vez polêmico denunciar o regime de apartheid na África do Sul, hoje é senso comum. David Cameron, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, reconheceu em 2006 que seu partido esteve “errado” sobre o apartheid, ao caracterizar Mandela como “um dos maiores homens que já viveram”. Um dia, líderes no Ocidente devem se ver forçados a assumir um mea culpa sobre os horrores em Gaza. Todavia, será tarde demais para dezenas de milhares.

Ainda assim, a mudança cultural abre caminho e o crédito pertence, em parte, a artistas, jornalistas e escritores que ousaram humanizar o povo palestino e dar visibilidade a seus direitos e sua dignidade.

Quase US$2 milhões angariados a Gaza no coração de Londres. No entanto, a verdadeira vitória, é algo muito maior: na capital que certa vez redigiu a Declaração de Balfour e pôs em tração a Nakba, milhares se emocionaram ao cantar a palavra Palestina.

Do trauma inominável surge um fio de esperança. Quem sabe, antes tarde do que nunca, a onda da história vai virar.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.