O genocídio israelense em Gaza não é sobre 7 de outubro, tampouco sobre libertar reféns israelenses. Sua razão de ser, desde o princípio, é preservar um regime racista ao explorar uma chance histórica, diante de gestões submissas na Casa Branca e além. O objetivo é avançar com um projeto expansionista teocrata, ao criar condições para a limpeza étnica, como parte de esforços de décadas pelo apagamento permanente do povo palestino de suas terras ancestrais.
Enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) enfim declara oficialmente a crise de fome em Gaza, Israel rejeita propostas de cessar-fogo e ameaça destruir, de uma vez por todas, a cidade homônima, “como Beit Hanoun”. Em 11 de julho, Israel Katz, ministro da Defesa, circulou publicamente uma imagem aérea de áreas devastadas em Rafah, no sul, e Beit Hanoun, ao norte, ao prometer o mesmo destino à cidade central.
Embriagado pela impunidade internacional, Israel pretende expulsar um milhão de civis a um campo de concentração, chamado pelo eufemismo de “cidade de tendas” ou “cidade humanitária”. Sem teto, famintos e debaixo de bombas e mais bombas, os palestinos são pouco a pouco aglomerados em gaiolas, prontos para a “expulsão” voluntária de seu país ou mesmo abate. Neste entremeio, o ministro das Finanças Bezalel Smotrich não hesitou em ordenar o chefe do exército Eyal Zamir: “Quem não sair … que morram de fome”.
Na Cisjordânia ocupada, Smotrich tirou da gaveta um plano israelense de longa data para seccionar ainda mais a Palestina em bantustões desconexos. Seu projeto esquarteja uma suposta promessa de um futuro Estado palestino, em ao menos três partes: dois guetos separados um do outro na Cisjordânia, e outro em Gaza. O intuito é minar a contiguidade geográfica do Estado, ao consolidar um projeto colonial “exclusivamente judaico” — logo, supremacista — “do rio ao mar”, como uma realidade imposta perpetuamente.
A Europa sabe bem: condena essas colônias ilegais, pede a Israel que evite expandi-las e finge indignação quando contrariada. E então? Nada. Ou pior que nada, a Europa segue a conceder status de comércio privilegiado a Israel, ao ponto de importar bens dos próprios colonatos, que rotula como “ilegais”. Ao financiar a economia de guerra de Israel, e insistir em um inofensivo repúdio, a Europa mantém sua cumplicidade histórica com o apartheid e o genocídio.
Do outro lado do Atlântico, a administração de Donald Trump faz mais do que encorajar o comportamento de Israel. Washington entregou um cheque em branco à ocupação para aniquilar Gaza e estrangular a Cisjordânia, mesmo que isso implique em assassinatos de cidadãos americanos ao longo do caminho.
Enquanto as crianças de Gaza morrem de fome, Trump, ao dar seguimento às políticas de Joe Biden e Antony Blinken — “Israel em primeiro lugar” — busca premiar Israel com uma série de acordos de normalização com regimes árabes. Em Paris, o mediador americano Tom Barak mediou um encontro entre o ministro de Assuntos Estratégicos israelense e o chanceler sírio da gestão interina, para além de pressionar o Líbano, igualmente frágil, a desarmar sua resistência. Neste entremeio, Washington avaliza a ocupação israelense de áreas estratégicas no sul do Líbano, bem como expansão à Síria, em violações flagrantes de sucessivos acordos de cessar-fogo.
A hegemonia israelense em Washington transcende a política. O grupo de lobby colonial AIPAC mantém meticulosamente a subserviência de ambos os partidos — democrata e republicano —, por meio de uma campanha de financiamento de “oportunidades iguais”. Para além do dinheiro, Israel recorre também a manipulação de mídia, calúnia e extorsão. Seu poder é tão incisivo que chega até mesmo a driblar o sistema de Justiça dos Estados Unidos, ao permitir que binacionais, americano-israelenses, escapem de julgamento por crimes cometidos em solo nacional. Tom Alexandrovich é apenas um exemplo, preso em uma operação recente contra a pedofilia, porém, libertado em Las Vegas após arcar com uma fiança de US$10 mil, autorizado a deixar o país.
Não é exceção — de fraude financeira a tráfico de órgãos e pedofilia, Alexandrovich é um entre muitos israelenses que facilmente escaparam da Justiça americana, parte de uma longa lista de criminosos que encontrou refúgio em Israel, no que se tornou um santuário global a estupradores, incluindo de crianças.
Além disso, via agentes do Mossad em terras estrangeiras — como a rede de chantagem e pedofilia de Jeffrey Epstein —, há indícios de que Israel explora fraquezas políticas para dobrar líderes americanos, e mesmo globais, a seu bel-prazer. Propinas, ameaças, sexo e lobby são as armas de manipulação da política externa a serviço de Tel Aviv, mesmo em detrimento dos próprios interesses do povo americano.
Trump, como seus predecessores, parece enredado na teia de influência e corrupção de órgãos como a AIPAC.
O custo de tudo isso se mede em vidas palestinas. Gaza está em ruínas, seus residentes são vítimas de uma fome deliberada confirmada pela ONU. Famintos e exaustos, se veem forçados a fazer fila sob drones armados e franco-atiradores, da “Fundação Humanitária de Gaza”. Na Cisjordânia, o cotidiano é assolado por checkpoints, estradas de apartheid, exclusivamente judaicas, demolições de casas e linchamentos e pogroms realizados por colonos sob escolta militar do Estado ocupante.
Ironicamente, Israel jamais escondeu seus objetivos: limpeza étnica, nenhuma soberania aos palestinos, nenhum direito de retorno e um apartheid colonial imposto ao povo nativo da região. Gaza se esvazia a conta-gotas e a Cisjordânia se fragmenta em bantustões. E a comunidade internacional — sobretudo Europa, Estados Unidos e países árabes — segue como cúmplice via encobrimento, silêncio ou traição.
Não é novidade. O apartheid sul-africano não implodiu porque ganhou consciência, mas sim porque o mundo o compeliu a tanto, via boicotes, sanções e a capacidade ética dos movimentos de base e de solidariedade. O mesmo pode ainda ocorrer no contexto atual. Toda bomba lançada a Gaza, cada oliveira em chamas, cada acre de terras roubado para construir assentamentos ilegais na Cisjordânia carrega não apenas as impressões digitais de Israel, como de governos e instituições que patrocinam, direta ou indiretamente, todas essas políticas supremacistas.
Os palestinos não podem viver de declarações e promessas vazias. O reconhecimento de um Estado palestino por parte da Europa não significa nada sem ações concretas, como sanções, desinvestimento e fim do comércio com Israel e seus colonatos racistas. Neste entremeio, Trump — mestre da hipocrisia — insta Rússia e Ucrânia a parar seu confronto, enquanto apoia Israel na retomada do genocídio para concluir sua missão genocida. E os ditadores, é mais do que a hora, devem parar de se esconder detrás de supostos “deveres internacionais”, dado que estes traduzem a mais e mais fome e morticínio.
Até que as coisas mudem, Israel seguirá pressionando por guerra e genocídio, sob tutela incondicional de Washington e dois pesos e duas medidas da Europa. Sua prepotência e apartheid se alimentam não apenas de bombas e tratores, mas também da impunidade, cumplicidade e paralisia das partes.
Assim como o Holocausto, não resta meio termo perante o genocídio palestino: ou se é a favor ou contra.
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