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Na Copa Árabe, o futebol palestino une o que a política dividiu

15 de dezembro de 2025, às 05h00

Copa Árabe de Futebol da FIFA no Catar [Reprodução]

Em meio ao genocídio e ao desespero, as vitórias da seleção palestina ofereceram ao povo um raro momento de triunfo e desafio, à medida que a identidade nacional transcende a fragmentação política.

Em um momento de profunda angústia palestina, as sucessivas vitórias da seleção nacional de futebol na Copa Árabe, que está sendo realizada no Catar, reacenderam um raro e precioso senso de união.

Essa alegria começa nas tendas encharcadas de famílias deslocadas em Gaza, se estende aos campos de refugiados no Líbano, na Jordânia e na Síria, e se espalha pelas comunidades palestinas em todo o mundo.

De Rafah vem Ihab Abu Jazar, o técnico da equipe, cuja casa foi destruída e cuja mãe foi transferida para uma tenda na área de Mawasi. Ele se torna, de repente, um farol de esperança.

Por um breve instante, seu time conquista o triunfo no gramado verde, classificando-se para a próxima fase e dedicando a vitória primeiro a Gaza e depois a todos os palestinos.

Por trás do Fida’i, apelido da equipe que significa lutador, emerge um espírito coletivo. Ele transcende o esporte, refletindo um profundo anseio dos palestinos por uma identidade íntegra, livre do sufocante aperto da divisão política e do desespero.

Imagens capturadas por câmeras e amplificadas pelas redes sociais contam a história: torcedores de todas as idades, mulheres, donas de casa e idosos, vibrando com paixão desenfreada em estádios, cafés e salas de estar ao redor do mundo.

O futebol pode ser uma obsessão global, mas para os palestinos hoje, ele carrega um peso muito maior do que o comum.

As vitórias deste time são sentidas como um ato de desafio, uma revolta simbólica contra a guerra genocida em Gaza. Cada gol declara: ainda estamos aqui, como a fênix que renasce das cinzas, como muitos palestinos gostam de dizer.

A tentativa de Israel de apagar a Palestina do mapa encontra sua resposta nos pés ágeis desses jogadores, um tapa na cara daqueles que afirmam que os palestinos não existem.

O simbolismo é profundo. Pela primeira vez, a Palestina aparece pura, seu nome e bandeira hasteados sem cores partidárias ou bagagem política.

Nesse breve interlúdio, os palestinos conquistam uma pausa da dor implacável, do cerco e dos conflitos internos, um momento para lavar os pecados da divisão.

Solidariedade árabe

A equipe personifica a união: da resiliência de Gaza à Cisjordânia, dos palestinos dentro das fronteiras de 1948 aos dispersos pela diáspora, do Egito à América Latina.

E então vem o abraço árabe. Torcedores e jogadores de toda a região se unem em apoio ao Fida’i, expressando uma solidariedade há muito reprimida nas arenas políticas e agora libertada através do esporte.

Isso marca o ressurgimento de um arabismo moderado que conecta árabes além das fronteiras políticas, como vimos durante a recente Copa do Mundo no Catar.

Um jogador tunisiano, após marcar contra a Palestina, corre para abraçar o técnico palestino como se pedisse desculpas. Torcidas árabes agitam bandeiras palestinas junto com as suas.

Um jogador palestino circula o campo, com as bandeiras síria e palestina entrelaçadas. O keffiyeh (turbante palestino) une a cena do início ao fim.

Para muitos, os estádios se tornam o único espaço para expressar o que as autoridades em alguns países árabes proibiram, com bandeiras e cânticos em apoio à Palestina fluindo livremente.

Nesse raro espaço de liberdade, a seleção palestina apresenta um futebol de qualidade notável, apesar das adversidades. Reunir o elenco foi um desafio; as oportunidades de treinamento eram escassas e os recursos, quase inexistentes.

O campeonato nacional está suspenso há anos e os bombardeios israelenses destruíram estádios e instalações esportivas.

Essas realidades tornam o desempenho da equipe ainda mais extraordinário. Parece que a pura força de vontade, a determinação e o espírito de fé compensam todas as deficiências técnicas.

Memória coletiva

Essa onda de orgulho acessa algo mais profundo, uma memória coletiva moldada por mais de um século de luta contra o colonialismo e a ocupação, quando a vontade e a resolução superam o desequilíbrio de poder.

Esta vibrante e determinada equipe relembra aos palestinos sua essência, forjada por décadas de resistência.

Evoca a imagem de “um cavalo criado para encostas de montanha”, como descrito pelo renomado poeta Mahmoud Darwish, sinalizando que além do caminho acidentado encontram-se os vales verdejantes de casa.

Como, após dois anos de uma brutal guerra genocida travada por potências fascistas globais cúmplices na tentativa de aniquilar dois milhões de palestinos, essa equipe se reagrupa e apresenta uma performance que parece o resultado de anos de preparação?

Essa pergunta por si só diz muito.

O sociólogo palestino Jamil Hilal há muito escreve sobre o papel vital da cultura na preservação de uma identidade palestina unificada, uma identidade que transcende a política, os partidos e as facções, especialmente à medida que o cenário político se fragmenta dolorosamente.

Literatura, poesia, arte, música, dança, canções folclóricas, culinária, bordados, símbolos e patrimônio, tradicionais e modernos, formam uma camada fundamental da consciência coletiva.

Essa base cultural deve permanecer intacta, protegida de divisões ideológicas. As disputas devem pairar acima dessa camada, jamais penetrá-la, para que não se rompa. Proteger essa esfera cultural é a apólice de seguro palestina para o futuro.

Um novo pilar

E por ser tão vital, Israel o ataca implacavelmente, assim como ataca as terras palestinas por meio de roubo e assentamentos.

Conhecemos as tentativas de apropriação da cultura palestina, seus símbolos, seus bordados, até mesmo seu knafeh e falafel. Quando o núcleo cultural de um povo se desintegra, ele se perde ao vento, com sua identidade e coesão nacional em risco.

Os palestinos em todos os lugares viam guerreiros, portadores da história, carregando muito mais do que o desejo de vencer um jogo.

Hoje, podemos adicionar uma nova dimensão a esse campo cultural: o campo esportivo nacional como um pilar de consciência e identidade coletivas. Ele oferece uma bússola que aponta para uma pátria, onde todos se encontram, deixando de lado as distinções políticas.

Alguns podem considerar isso um exagero, mas a dura realidade que assola a política palestina exige o fortalecimento desses pilares de sustentação para evitar o colapso total ou rupturas em cascata.

Nos jogos disputados pela seleção palestina, milhões de palestinos em todo o mundo não estavam apenas assistindo a jogadores. Estavam assistindo a fida’iyyin – combatentes. Viram guerreiros, portadores da história, carregando muito mais do que o desejo de vencer uma partida.

Publicado originalmente em inglês no Middle East Eye em 9 de dezembro de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.