Um acerto de contas histórico está em andamento nos corredores da Corte Internacional de Justiça em Haia. O processo de genocídio movido pela África do Sul contra Israel — ao qual se juntaram Brasil, Irlanda, Turquia, Chile e outras sete nações — não é apenas um processo legal, mas uma virada fundamental, uma mudança radical na forma como a comunidade internacional está agora preparada para encarar a conduta israelense em Gaza. Há dois anos, tal mudança era inimaginável.
Os números contam uma história devastadora. De acordo com o Ministério da Saúde em Gaza, mais de 66.000 palestinos foram mortos desde outubro de 2023. Uma investigação da revista israelense +972, em conjunto com o The Guardian, constatou que cinco em cada seis palestinos mortos pelo exército israelense eram civis. Essa taxa de mortalidade de civis, de 83%, contrasta fortemente com as alegações oficiais de Israel sobre alvos de precisão e proteção de civis.
“A velocidade e a escala das mortes e da destruição em Gaza são incomparáveis a tudo o que vivi durante meus anos como secretário-geral”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, palavras que carregam o peso de alguém que testemunhou conflitos em todo o mundo. Sua avaliação reflete um consenso internacional crescente de que o que está acontecendo em Gaza representa algo extraordinário em sua abrangência e devastação.
O que aconteceu foi que a estrutura jurídica erguida ao longo de décadas para prevenir atrocidades foi acionada com uma força sem precedentes. Em janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou medidas provisórias, constatando violações plausíveis de direitos humanos e ordenando que Israel prevenisse o genocídio, garantisse ajuda humanitária e preservasse as provas. Em maio, o Tribunal foi ainda mais longe com a ordem extraordinária de que Israel interrompesse imediatamente sua ofensiva militar em Rafah. Esses não são gestos simbólicos, mas ordens vinculativas da mais alta corte do mundo, refletindo a preocupação judicial com a conduta documentada no terreno.
Aliados tradicionais começaram a se distanciar publicamente. O presidente francês, Emmanuel Macron, declarou que combater o terrorismo não significa “arrasar Gaza ou atacar indiscriminadamente populações civis”. O ex-ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, David Cameron, afirmou que o apoio britânico a Israel “não é incondicional”. Essas declarações cuidadosamente calculadas de governos que historicamente estiveram ao lado de Israel sinalizam um terremoto diplomático.
Talvez o mais revelador tenha sido a declaração do presidente Petro, que expressou o que muitos observadores internacionais passaram a acreditar: “Em Gaza, não apenas crianças estão morrendo, mas também o sistema das Nações Unidas. Os valores que o Ocidente alega defender estão morrendo”. Tal declaração captura a profunda desilusão com as instituições ocidentais, que se mostraram incapazes ou relutantes em fazer cumprir seus próprios princípios declarados.
O público americano, por tanto tempo o mais fiel apoiador de Israel, mudou drasticamente. Enquanto em março de 2024 a aprovação da ação militar israelense em Gaza havia caído para 36%, a desaprovação chegou a 55%. Embora a aprovação tenha aumentado um pouco em junho, a desaprovação permaneceu alta, em 48% — uma transformação notável em um país onde o apoio a Israel era, até recentemente, uma certeza política.
O que motivava os cálculos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu durante essa crise? Uma investigação do New York Times revelou que Netanyahu rejeitou repetidamente acordos de cessar-fogo para se manter no poder e evitar acusações de corrupção. O jornalista investigativo israelense Ronen Bergman concluiu: “Netanyahu colocou a integridade da coalizão, a segurança da continuidade do seu governo e do Estado… como prioridade máxima, acima de qualquer outra prioridade”. Em outras palavras, a sobrevivência política se sobrepôs às vidas tanto dos civis palestinos quanto dos reféns israelenses mantidos em Gaza.
Essa revelação expõe a essência da mudança: a comunidade internacional não está mais disposta a aceitar justificativas genéricas para ações militares quando as evidências sugerem que cálculos políticos, e não imperativos de segurança, orientam a tomada de decisões. A documentação tornou-se extensa demais, o número de vítimas civis muito alto, a catástrofe humanitária muito visível.
A arquitetura jurídica, diplomática e moral que outrora conferia a Israel ampla margem de manobra internacionalmente se fragmentou. Vários países aderiram aos processos por genocídio. A Suprema Corte do mundo emitiu ordens vinculativas. Aliados tradicionais condicionam publicamente seu apoio. A mídia internacional, incluindo veículos israelenses, documenta padrões sistêmicos que contradizem as narrativas oficiais. A opinião pública em países-chave que apoiam Israel mudou drasticamente.
Isso não significa que Israel não tenha amigos – o país ainda goza de forte apoio do Congresso dos EUA e de muitos governos ocidentais. Tampouco significa que a crítica à política do governo israelense seja um ataque ao direito de Israel à existência ou à sua prerrogativa de autodefesa. A distinção é essencial, mesmo que as linhas divisórias às vezes se confundam no calor da retórica de todos os lados.
O que mudou fundamentalmente, contudo, é que as afirmações da justiça israelense não inspiram mais deferência internacional automática, que as alegações de necessidade militar estão sendo submetidas a um escrutínio rigoroso e que a presunção de boa-fé foi corroída por evidências documentadas. A escala de destruição e morte rompeu o escudo protetor que antes desviava as críticas.
A questão já não é se devemos ou não criticar a conduta israelense em Gaza, mas sim se essa crítica se traduzirá em alguma forma significativa de responsabilização. Os processos judiciais estão em andamento. A pressão diplomática aumenta. A opinião pública muda. No entanto, as bombas continuam a cair e o número de mortos continua a subir.
A história registrará não apenas o que aconteceu em Gaza, mas também o que o mundo fez enquanto isso acontecia e o que fez depois. Por ora, o julgamento da opinião internacional é inequívoco: algo se rompeu e não pode ser consertado tão facilmente.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.
![O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, discursa durante uma coletiva de imprensa conjunta com o presidente dos EUA, Donald Trump, na Sala de Jantar de Estado da Casa Branca, em 29 de setembro de 2025, em Washington, DC. [Alex Wong/Getty Images]](https://www.monitordooriente.com/wp-content/uploads/2025/11/GettyImages-2238142685.webp)