O comediante Bassem Youssef, famoso e perseguido a partir da revolução de 2011,  retorna “seguro” às telas da TV egípcia

Joseph Fahim
2 semanas ago

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Nos últimos dois anos, Youssef finalmente conseguiu se reinventar, tornando-se um dos defensores mais influentes e eloquentes da causa palestina no Ocidente.[Blu Bood TV]

O tão aguardado retorno do comediante à TV egípcia trouxe esperança para o público árabe, que vinha sofrendo com a censura, mas parece que alguns temas estavam fora de questão.

Dois eventos midiáticos aparentemente distintos causaram grande alvoroço na cultura árabe no último mês.

O primeiro foi uma enorme controvérsia gerada pela inclusão de comediantes americanos na Temporada de Riad.

Em um nível mais regional, o segundo foi o retorno inesperado do comediante egípcio Bassem Youssef à TV egípcia.

Ambos os eventos foram vistos por analistas otimistas como o início de uma nova era de flexibilização da censura em dois dos países mais autocráticos da região.

No entanto, considerando o contexto econômico mais amplo de ambas as nações, o cenário se mostra muito mais complexo.

O curioso caso de Bassem Youssef e o exemplo da Temporada de Riad oferecem um panorama de duas cenas culturais em disputa.

Cada um dividido entre uma sede insaciável de controle e a tentação de um mercado com enormes recompensas econômicas.

A ascensão e queda de El Bernameg

De 2012 a 2014, o cirurgião cardíaco que se tornou YouTuber, Youssef, foi o homem mais popular do mundo árabe.

Fruto da revolução de 2011 e da recém-conquistada liberdade da época, Youssef tornou-se um sucesso instantâneo com sua comédia política no estilo do Daily Show.

Ele rapidamente fechou contratos de TV com canais privados que mais tarde seriam consolidados pelo regime de Sisi.

El Bernameg (O Programa), de Youssef, foi uma sensação: notícias satíricas ousadas, inventivas e grosseiras que miravam os sucessivos regimes governantes: Mubarak, a Irmandade Muçulmana e, em seguida, o regime militar de Abdel Fattah el-Sisi.

Foi, e continua sendo, o programa de TV mais ousado que o mundo árabe já produziu: um documento da liberdade efêmera e arduamente conquistada, brevemente alcançada pela revolução de 2011.

Youssef não era apenas o crítico mais influente do regime; ele era a voz de uma nação nova e livre, lutando para salvaguardar seu direito à autodeterminação.

O fracasso da revolução e a ascensão de Sisi puseram um fim abrupto a El Bernameg. Seu cancelamento foi amplamente documentado nas apresentações de stand-up de Youssef, em entrevistas e no documentário de 2016, Tickling Giants.

A crítica mordaz que os egípcios outrora aplaudiam durante o breve período da Irmandade Muçulmana foi rejeitada veementemente quando o programa passou a mirar em Sisi.

Quando o comandante militar assumiu oficialmente a presidência em junho de 2014, El Bernameg foi cancelado.

Sob o novo presidente, a produtora do programa teve seus escritórios invadidos e os computadores dos funcionários foram confiscados.

O próprio Youssef foi processado e punido com uma multa de US$ 10 milhões.

Em novembro de 2014, Youssef fugiu para Dubai e, em 2015, mudou-se definitivamente para os EUA.

O retorno

Seguiram-se vários projetos: uma série sobre dietas veganas, um programa satírico sobre a política americana e participações especiais em Mo (Netflix), Ramy (Hulu) e Lioness (Paramount).

Todos, porém, foram ofuscados pelo legado de El Bernameg. Youssef encontrou maior estabilidade com uma série de apresentações de stand-up, a mais bem-sucedida delas, em árabe, que recontava parcialmente sua jornada do Egito para os EUA.

Foi somente em sua impactante entrevista com Piers Morgan, em 17 de outubro de 2023, apenas duas semanas após 7 de outubro, que Youssef finalmente conseguiu reconquistar a atenção do público, graças ao seu raciocínio rápido e argumentos cuidadosamente articulados que desafiavam corajosamente a narrativa pró-Israel dominante na época. Para os árabes, Youssef era mais uma vez um ídolo; a voz dos oprimidos e reprimidos, fazendo sucesso em algumas das maiores plataformas de mídia do mundo.

Mais entrevistas se seguiram à medida que sua reputação começou a crescer além das fronteiras do mundo árabe.

Nos últimos dois anos, Youssef finalmente conseguiu se reinventar, tornando-se um dos defensores mais influentes e eloquentes da causa palestina no Ocidente.

Diante de sua recém-adquirida popularidade global, o retorno de Youssef à TV egípcia é ainda mais intrigante.

Uma análise mais atenta, no entanto, pode indicar que os sinais já estavam claros.

Há vários anos, Youssef deixou de comentar sobre assuntos egípcios, seja sobre as deploráveis ​​condições de direitos humanos ou sobre a economia em colapso.

Ele passou a se preocupar menos com a liberdade de expressão na região, à medida que seu foco se voltava para seu país de adoção.

A colaboração com a Arábia Saudita

Causou estranheza quando a gigante emissora de TV saudita MBC anunciou a participação de Youssef na sétima temporada do programa “Arabs Got Talent” no ano passado, o assunto causou alvoroço.

O fundo soberano da Arábia Saudita detém 54% da MBC, que nunca esteve livre de interferência governamental.

Antes de 7 de outubro, quando Riad se aproximava da assinatura dos Acordos de Abraão com Israel, a MBC foi acusada de tentar pavimentar o caminho para a normalização das relações por meio de diversos programas exibidos durante o Ramadã de 2020.

Youssef nunca justificou sua participação no “Arabs Got Talent”, e todo o caso foi abafado até seu retorno à TV egípcia no mês passado.

O anúncio veio logo após o surpreendente indulto presidencial concedido ao proeminente ativista Alaa Abd el-Fattah, o prisioneiro político mais famoso do Egito, que passou a maior parte da última década detido.

A libertação de Abd el-Fattah foi inicialmente vista como um possível sinal de maior liberdade política.

No entanto, a detenção de ativistas e usuários do TikTok nunca cessou.

O Mada Masr, a plataforma de mídia digital independente mais respeitada do Egito, noticiou inúmeras prisões de ativistas desde a libertação de Abd el-Fattah.

Além disso, 131 manifestantes permanecem presos após dois anos por expressarem solidariedade à causa palestina e rejeitarem o genocídio em Gaza.

É inegável, contudo, que há um afrouxamento perceptível da censura em comparação com anos anteriores.

A mídia televisiva agora critica o desempenho do governo com frequência, e comentaristas de mídia de maior destaque lamentam a ausência de oposição política.

Havia muita especulação sobre o que Youssef diria na TV egípcia, com alguns comentaristas saudando seu retorno como mais um sinal tangível da tão esperada democratização da mídia egípcia.

No fim, porém, foi muito barulho por nada.

Uma mudança do âmbito doméstico para o internacional

Ao longo de quatro episódios, Youssef falou como cidadão americano, focando na Palestina, em Israel e na cumplicidade dos EUA no genocídio em Gaza.

Todos os temas relacionados foram abordados: o sionismo cristão, a suposta chantagem de Netanyahu contra presidentes americanos sobre suas vidas sexuais (Monica Lewinsky, os arquivos Epstein), os apagões midiáticos, a cultura da pós-verdade, a ascensão alarmante da inteligência artificial e a ignorância e o racismo dos republicanos.

Para quem acompanha de perto a política americana, não havia nada remotamente revelador ou novo nos episódios de Youssef.

E, dada a enorme simpatia do público árabe pela Palestina, o programa soou como uma pregação vazia para convertidos.

Youssef se absteve de discutir sua saída desastrosa do Egito ou qualquer questão relacionada aos assuntos internos do país.

Ele falava como um estrangeiro, fixado apenas nos Estados Unidos.

O primeiro episódio gerou algumas manchetes, mas os egípcios rapidamente perderam o interesse e mal assistiram ao restante da série.

Youssef previu a reação negativa, declarando preventivamente no primeiro episódio que “não era mais o Bassem de 2011” – não era mais o Bassem que a geração da revolução esperava que ele continuasse sendo.

Ao final da série, Youssef fez questão de agradecer à United Media Services (UMS), o conglomerado estatal de inteligência que monopolizou o cenário midiático egípcio nos últimos nove anos.

A Reação Negativa ao Festival de Comédia de Riad

O retorno de Youssef ao programa coincidiu com o Festival de Comédia de Riad, realizado de 26 de setembro a 9 de outubro, uma feira multimilionária organizada pelo governo saudita que contou com alguns dos maiores comediantes americanos, incluindo Louis CK, Dave Chappelle e Kevin Hart, entre outros.

A participação dos comediantes americanos causou polêmica na imprensa ocidental. Os críticos os acusaram de hipocrisia: atacar a crescente restrição à liberdade de expressão nos Estados Unidos enquanto se apresentavam em um país que continua a perseguir ativistas e jornalistas. A comediante Atsuko Okatsuka causou polêmica ao publicar supostos contratos redigidos pela Autoridade Geral de Entretenimento de Riad.

“Podem dizer o que quiserem sobre o regime egípcio, sobre o regime saudita, mas eles não contribuíram com bilhões de dólares para o genocídio de uma nação inteira diante dos nossos olhos.”

Bassem Youssef

Uma captura de tela do contrato estipulava o seguinte:

“O ARTISTA não deverá preparar ou apresentar qualquer material que possa ser considerado degradante, difamatório ou que traga descrédito público, desprezo, escândalo, constrangimento ou ridículo a:

A) O Reino da Arábia Saudita, incluindo sua liderança, figuras públicas, cultura ou povo; B) A família real saudita, o sistema jurídico ou o governo; e C) Qualquer religião, tradição religiosa, figura religiosa ou prática religiosa.”

No popular podcast americano Lovett or Leave It e posteriormente em seu canal no YouTube, Youssef rebateu as críticas dos comediantes americanos participantes, afirmando que, quando se trata da Palestina, os EUA representam um mal maior do que a Arábia Saudita.

“Você pode dizer o que quiser sobre o regime egípcio, sobre o regime saudita, mas eles não contribuíram com bilhões de dólares para o genocídio de uma nação inteira diante dos nossos olhos”, disse ele.

A lógica de Youssef é moralmente falha. A Arábia Saudita e o Egito podem não ter ajudado diretamente no genocídio em Gaza, mas ambos cometeram atos graves que causaram imenso sofrimento aos palestinos.

Além disso, não financiar o genocídio não é desculpa para ignorar as violações dos direitos humanos às quais o próprio Youssef foi submetido.

No Egito, a percepção sobre as festividades de Riad é drasticamente diferente da de Youssef.

Em outubro, Turki al-Sheikh, presidente da Autoridade Geral de Entretenimento, anunciou que nenhuma peça egípcia seria apresentada na próxima Temporada de Riad, um duro golpe para os artistas egípcios que haviam encontrado uma tábua de salvação nos lucrativos shows na Arábia Saudita.

Sheikh se posicionou como a figura mais poderosa do entretenimento árabe, atuando como um fiscalizador de todas as instituições sauditas que lutam por autonomia. Ele atraiu a ira dos egípcios após ridicularizar o ícone da comédia Mohamed. Sobhi e, posteriormente, retirou uma série de TV da plataforma de streaming Shahid, da MBC, depois que um de seus atores principais o criticou duramente.

Pouco depois de 7 de outubro de 2023, o comediante Mohamed Sallam desistiu de uma peça de comédia programada para a temporada de Riad naquele mesmo mês, justificando sua decisão dizendo: “Não posso fazer piadas enquanto nossos irmãos estão sendo mortos”.

A posição de Sallam não ficou impune. Ele desapareceu pelos dois anos seguintes, ressurgindo apenas em outubro passado com uma nova minissérie na Watchit, a principal plataforma de streaming do Egito.

Um defensor caído

Youssef não levou em consideração nenhum desses incidentes em sua frágil defesa da Arábia Saudita. Vários artistas talentosos lutam por mais liberdades no reino – especialmente no cinema, onde produções independentes aclamadas como Night Courier (2023) e Hijra (2025) estão expandindo os limites da censura.

A luta pela liberdade artística certamente não é obra de Turki Al-Sheikh, e a postura de Youssef, portanto, mina completamente os esforços desses artistas independentes.

O mesmo vale para o Egito. Depois de superar a crise econômica de 2022, que dizimou toda a classe média do país, o regime atual se estabilizou, sabendo que o público não tem mais o desejo ou a energia para mudá-lo.

A mídia e as artes estão começando a colher os frutos dessa transição gradual, porém lenta. Apesar da repressão incessante aos usuários do TikTok, o conservadorismo ferrenho de um regime que está longe de ser tão moderno ou progressista quanto se imagina.

A economia é a força óbvia no centro do conflito entre a lenta busca por liberdades e a perseguição simultânea de vozes dissidentes.

Entretenimento e esportes são fundamentais para o projeto Visão Saudita 2030, conferindo ao reino visibilidade e prestígio consideráveis.

‘Hijra’ critica a mercantilização da religião na cidade sagrada muçulmana de Meca (Biet Ameen Production)

No entanto, manter a ordem e sufocar possíveis caminhos para a rebelião continuam sendo cruciais para a sobrevivência da família real saudita.

O Egito está igualmente entre a cruz e a espada. O TikTok e o entretenimento representam fontes significativas de receita para uma administração ainda cautelosa com seus recentes fracassos econômicos.

Contudo, eles também incorporam os desejos de Um povo que anseia por liberdades — econômicas, sociais e sexuais — grandes demais para os patriarcas piedosos no poder tolerarem.

O governo atual pode não se sentir mais ameaçado pela oposição frágil e desorganizada, mas, assim como seu homólogo saudita, ainda considera qualquer reação organizada — como os protestos em Gaza — perigosa e uma potencial faísca para uma crescente discórdia que precisa ser controlada.

Diante dessas realidades complexas, os comentários simplistas de Youssef e seu retorno decepcionante provam que ele perdeu o contato com o mundo árabe. Ele escolheu lutar pela Palestina enquanto fecha os olhos para as injustiças não apenas no Egito e na Arábia Saudita, mas também no Sudão e em outras partes devastadas da região.

Youssef foi um herói para muitos, e seu exílio turbulento, que o levou a perder o funeral do pai, poderia ter destruído qualquer um.

Mas Youssef nunca escolheu ser um herói, nem nunca quis ser. Pai de dois filhos, ivendo em uma das cidades mais caras do planeta, pode ser presunçoso esperar que um homem lute por justiça e liberdade em toda uma região.

Sua defesa da Arábia Saudita e do Egito, e sua aparição inútil na TV deste último, foram injustificadas.

A Palestina ganhou um aliado valioso e poderoso no americano Youssef, mas, a julgar pelas entrevistas de outubro, os egípcios oprimidos podem ter perdido seu maior defensor.

Não seremos livres até que todos sejamos livres.

Esta é a maior lição que Gaza nos ensinou. Egito, Arábia Saudita e o resto da região não são diferentes.

Originalmente publicado em inglês no Middle East Eye em 04 de novembro de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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