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O caixão antes do pão

22 de outubro de 2025, às 01h30

Palestinos palestinos esperam ajuda, enquanto as pessoas lutam contra a fome devido ao bloqueio alimentar israelense no campo de refugiados de Nuseirat em Deir al-Balah, Gaza, em 15 de outubro de 2025. [Moiz Salhi/Anadolu via Getty Images]

A tragédia em Gaza não estava no número de mortos, mas na ordem das prioridades; pois a contradição fere a dignidade e dói mais na alma do que a morte. Enquanto as mães procuravam entre os escombros pelos filhos ou o que restava deles, Israel contava seus mortos e negociava com o mundo para recuperá-los antes de permitir a passagem de um caminhão de remédios ou um saco de farinha. Como se os corpos de seus soldados merecessem luz, enquanto os corpos dos palestinos fossem enterrados na escuridão, sem nome, sem despedida, sem sequer um último beijo.

As negociações eram conduzidas sobre uma mesa fria, onde havia corpos, fome, gritos e lágrimas; morte aqui e espera ali. Não se falava de cessar-fogo ou remédios, mas de destroços que queriam primeiro, antes que uma carga de vida pudesse passar. Que lógica é essa que torna o corpo morto mais merecedor do que o faminto, o caixão anterior  ao pão? Que lógica é essa que inverte a balança da misericórdia, tornando a morte um privilégio e a vida um crime?

A ajuda começou a ser distribuída de acordo com um cronograma para os mortos, não para os vivos; quem é enterrado chega antes de quem é salvo, e as lápides são levantadas antes dos pães. Em Gaza, as pessoas não perguntam mais quando a ajuda chegará, mas quando as restrições ao ar serão levantadas. Até respirar tornou-se um luxo que exige permissão. Em cada rua há espera, em cada espera há paciência de montanha, e em cada paciência há uma ferida que não cicatriza. Ainda assim, a cidade continua a gerar vida do coração de sua própria morte.

Eles enterram seus mortos em caixões de madeira, nós enterramos nossa dor em nossos corações, que floresce em esperança. Eles choram um soldado, nós carregamos milhares de rostos em uma lágrima que rega a terra para gerar descendentes dos mártires. Em Gaza, não havia tempo para chorar; eles respiravam o que restava do ar, transformando- o em espírito de dignidade e orgulho. Observavam o mundo negociar sobre seus mortos, sem que ninguém os mencionasse ou consolasse, enquanto eles mantinham a memória viva. E ainda assim, não gritaram, não imploraram, não levantaram bandeira de fraqueza, nem esperaram que a mesa falasse por eles; ergueram seus rostos ao céu, dizendo: “Se não há ira sobre nós, não nos importamos”.

Israel contava suas perdas em números de corpos, Gaza contava seus ganhos em quem ainda respirava. Eles se orgulhavam de não abandonar seus mortos, enquanto deixavam uma nação inteira sufocar atrás das fronteiras. Que civilização é essa que realiza rituais para seus mortos, mas nega água a uma criança sedenta? Que estado é esse que reverencia seus corpos e deixa a humanidade sob os escombros?

As negociações eram uma imagem condensada do mundo: um mundo parado nas fronteiras, esperando um acordo sobre os corpos, enquanto pessoas morriam sem permissão para passar. Eles revelaram seus rostos quando acreditaram que o retorno de um corpo morto era mais importante do que salvar vidas.

Mas Gaza, como sempre, foi a exceção em tudo e um choque para os inimigos antes de qualquer outro; isso é o que dizem e pensam. Gaza não esperou consolo nem pediu direitos. Enquanto outros contavam os mortos, ela contava seus passos rumo à vida, reorganizando os escombros como se construísse um novo país sobre os ossos dos que morreram, de pé com orgulho, proclamando que o pulso não se mede pelo número de corações que pararam, mas pelos que ainda semeiam o futuro, pois o futuro é nosso.

Assim, quando a história escrever sua última linha, não dirá quem entregou os corpos, mas quem manteve sua alma viva. Não lembrará o número de caixões, mas o número de corações que não se quebraram. O estado ocupante reuniu seus mortos, Gaza reuniu a si mesma. Eles enterraram seus corpos, Gaza enterrou as sementes de suas oliveiras, que iluminarão todos os horizontes. Eles celebraram o fim, Gaza abriu um novo capítulo.

Em Gaza, as pessoas não pediam milagres; queriam apenas uma dose de remédio para uma criança à beira da morte ou um pedaço de pão para uma idosa. Mas as fronteiras permaneceram fechadas porque os mortos do outro lado ainda não haviam sido devolvidos. Como se a vida estivesse suspensa por um corpo em outro lugar. O mundo não ouvia os gritos dos vivos, apenas escutava o silêncio das sepulturas, que agradava  a Israel mais do que a humanidade.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.