Senti a gravidade e a força desse momento histórico confundindo-se com o cinza comum da cidade, na plataforma do trem para o aeroporto internacional.
Reconhecemo-nos pelos lenços, nos entreolhamos certos de compartilhar, cada um a partir de sua subjetividade, idade e marcas, valores comuns.
Dois anos de ataque ao povo verdadeiramente escolhido pela história para nos ensinar sobre resistência e humanidade.
Sorrisos, danças, coros, devoção, fé, coragem, verdade, arte, inteligência, beleza, amorosidade, força, união e a inacreditável alegria persistindo.
Resistindo diante de suas crianças, lares, familiares, hospitais, escolas, passado, história, identidade, futuro, campo, cidade, oliveiras, país, território, chão… arruinados, violados, insultados, destroçados, mutilados, aviltados, massacrados!
Resiliência e altivez diante do covarde, contínuo, perverso, televisionado genocídio, não de um povo, mas da humanidade em nós.
Quando já não podíamos mais respirar, a inspiração desse povo encheu os pulmões de esperança e inflou as velas da flotilha que, apontando para Gaza, convocou ao levante global e impôs o cessar-fogo, a pausa.
Um fôlego diante da hipocrisia assassina que almeja, debochada, o insólito Nobel da Paz.
Cessar-fogo anunciado e fomos receber os porta-vozes da resistência, aportando em São Paulo, reverência à fragilidade forte de um poema chamado flotilha!
Dois anos, de oitenta, do inferno cotidiano, ao vivo, nos usurpando a esperança de dignidade, humanidade e futuro. E, entre as imagens de horror, a expressão de vida nos banhando, vestindo, perfumando, incensando e nos tecendo de resistência palestina.
LEIA: Israel monitora ativistas pró-Palestina em todo o mundo, incluindo no Brasil
Nossos olhos, exaustos de sangue e dor, atônitos com tanta verdade revelada, tornaram-se atentos ao deck desde Madleen, verso, capturado e seguido por dezenas de embarcações, estrofes.
Choramos diante do desenrolar épico: afeto, foco, agudeza sorridente de argonautas anônimos no azul do céu e mar, misturados às cartas, músicas, desenhos, mensagens daqueles, à espera, sob bombas, em tendas, ruas, beira mar.
Velas de fé navegando para seu próprio sequestro, naves-território desprendido da faixa, chão flutuante da nação palestina expandida, carregando ativistas, tal qual brigadistas internacionais da Guerra Civil Espanhola e Revolução Cubana. 461 voluntários, de 44 países, a levar ajuda humanitária. Acompanhados e apoiados em tempo real por milhões em marcha, ao redor do planeta.
A potência do simbólico no real, mastros misturando bandeiras palestinas às de nações acovardadas, enfim representadas por pessoas comuns acometidas pela resistência palestina, sob o encantamento do lenço-manto keffiyeh, que nos veste da abundância das redes de pesca e folhas de oliveiras.
Enquanto um novo e dinâmico Guernica é desenhado, em tempo real, na internet.
Amsha, Layla, Bisan, Khaled, Marian, Hassan, Yasmine, Mahmoud não param, sobre e sob escombros, de desencavar e enterrar mártires amados; socorrer e acalantar corpos mutilados. Cheiro de pólvora, ar de poeira, sede, fome, morte, sangue, drones de guerra… cenas horrendas, paralisantes, emudecedoras.
Os palestinos relatam, denunciam, cantam, peregrinam de norte a sul, sul a norte, norte a sul, sul a norte.
Heróis anônimos de um tempo decisivo, divisor, “régua moral”, denúncia da inexistência de instituições, países e poderes que possam parar a infâmia.
Desvelada a impotência ou deflagrada a revolução global?
Sem meio-termo, apenas um horizonte possível, uma única luta sem fronteiras, de todos os povos originários, ribeirinhos, quilombolas, aquilombados, favelados, refugiados, das pessoas de boa fé e bom coração, contra vilões patéticos, porcos narcisistas, sem caráter, drogaditos pedófilos, homens da guerra covarde dos drones.
Navegamos juntos, na tragédia encenada, epopeia narrada, editada por algoritmos, entre o limiar do virtual e da história contemporânea.
LEIA: Flotilha: brasileiros relatam torturas causadas por forças israelenses
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.









