Há quase dois anos, Gaza se transformou em uma ilha de morte e silêncio. Cercada por terra, bloqueada pelo céu e isolada do mar, o enclave se transformou na maior prisão a céu aberto do planeta. A fome foi deliberadamente planejada, com relatórios da ONU confirmando que quase meio milhão de habitantes de Gaza enfrentam uma fome catastrófica. Hospitais desmoronam sem combustível, enquanto crianças morrem de desnutrição diante das câmeras do mundo. Os EUA financiam a máquina de guerra israelense, fornecendo armas e vetando resoluções, garantindo que nenhuma força militar internacional possa intervir para interromper este cerco. Diante desse desespero, as flotilhas de ajuda humanitária tornaram-se linhas de vida da resistência, levando não apenas alimentos e remédios, mas também uma mensagem moral para o mundo.
Os últimos meses testemunharam novas tentativas de romper esse domínio marítimo. Em junho de 2025, o Madleen, transportando fórmula infantil, farinha, arroz, fraldas e medicamentos essenciais, partiu da Sicília sob a bandeira da Coalizão da Flotilha da Liberdade. Foi interceptado em águas internacionais pelas forças israelenses, sua carga apreendida, sua tripulação detida e sua missão encerrada antes que um único saco de farinha chegasse a Gaza. Em julho de 2025, o Handala seguiu com intenções semelhantes — levar suprimentos humanitários e lembrar ao mundo o sofrimento de Gaza. Ele também foi detido por Israel, abordado no mar e arrastado para Ashdod, com sua ajuda confiscada. Mais recentemente, a Flotilha Global Sumud — a maior missão desse tipo da história, reunindo mais de 50 barcos de todo o mundo — está tentando abrir caminho através do bloqueio. Navios como o Family e o Alma já foram atingidos por drones, seus cascos danificados e seus conveses de armazenamento destruídos. Não se trata de acidentes de guerra. São atos deliberados de terror de Estado, com o objetivo de intimidar civis desarmados que transportavam alimentos, medicamentos e solidariedade.
A própria geografia de Gaza torna esses esforços particularmente significativos. O litoral de 40 quilômetros de Gaza no Mediterrâneo deveria ter sido sua linha de vida natural, uma passagem para o comércio, o movimento e a conexão com o mundo. É precisamente esse litoral que Israel, com o apoio dos EUA, busca explorar — vislumbrando projetos de extração de gás e controle portuário que transformariam as águas palestinas em uma colônia econômica. O bloqueio israelense militarizou o mar, impedindo pescadores de se aventurarem além de algumas milhas náuticas, quanto mais permitindo a atracação de navios de ajuda humanitária. Ao contrário dos comboios terrestres, que devem passar por postos de controle israelenses ou egípcios, ou por lançamentos aéreos, que Israel se recusa a permitir, o mar continua sendo a única rota viável para intervenção humanitária independente. É por isso que as flotilhas de ajuda humanitária são tão importantes. Não são meros navios — são declarações flutuantes de que o mar não pertence ao ocupante, mas à humanidade, e que as águas de Gaza não podem ser para sempre um muro de exclusão.
As flotilhas de ajuda humanitária em si não são um fenômeno novo. Sua história remonta a 2008, quando o Movimento Gaza Livre conduziu com sucesso barcos como o Gaza Livre e o Liberty para a faixa sitiada, transportando suprimentos médicos e ativistas. Essas primeiras missões, embora modestas em escala, provaram que era possível avançar. O mundo se lembra mais vividamente do Mavi Marmara de 2010, quando comandos israelenses abordaram o navio turco em águas internacionais, matando nove ativistas a sangue frio. Esse massacre revelou até onde Israel iria para manter seu domínio e colocou as flotilhas firmemente no mapa global da resistência. Desde então, inúmeras tentativas — desde o Rachel Corrie até o Barco das Mulheres para Gaza em 2016, e as missões da Flotilha da Liberdade em 2018 — tentaram, sem sucesso, chegar à costa, mas cada uma delas levou adiante o espírito de desafio. A Flotilha Global Sumud de 2025 não é, portanto, uma tentativa isolada, mas o capítulo mais recente de uma longa história de solidariedade marítima. Ela se baseia na coragem daqueles que a precederam, herdando sua força e amplificando sua mensagem.
O que torna a Flotilha Global Sumud especialmente significativa é sua escala e sua ressonância diplomática. Mais de 50 embarcações de diversas nações, transportando ativistas, políticos,líderes da sociedade civil, e até mesmo figuras públicas como Greta Thunberg, uniram-se por uma causa comum. Espanha e Itália enviaram navios para escoltar a flotilha, apesar da pressão de Israel e seus aliados. Pela primeira vez, uma missão marítima a Gaza não é apenas um ato simbólico de ONGs ou ativistas, mas uma declaração internacional coordenada. Isso demonstra que, embora os Estados possam não estar preparados para confrontar Israel militarmente, eles não estão mais dispostos a permanecer como observadores passivos. Em um mundo frequentemente paralisado pela política de poder, a imagem de dezenas de navios navegando juntos sob a bandeira de “sumud” — firmeza — sinaliza uma crescente ruptura diplomática.
Este é o verdadeiro poder das flotilhas: elas funcionam não apenas como transportadoras de ajuda, mas também como veículos de significado político. Elas colocam Israel em um dilema. Permiti-las passar seria reconhecer a ilegitimidade do bloqueio; impedi-las violentamente é expor sua própria brutalidade diante do mundo. Em ambos os casos, as flotilhas corroem a posição diplomática de Israel e evidenciam a falência moral de seus aliados. A participação de tantos países no esforço da Sumud Global demonstra que o consenso que sustenta o bloqueio está se desgastando. Mesmo que os navios sejam interceptados, sua própria existência enfraquece a narrativa de que as ações de Israel são incontestáveis.
E, no entanto, simbolismo e diplomacia, por mais importantes que sejam, não podem substituir a proteção concreta da vida humana. Os habitantes de Gaza não precisam apenas de solidariedade, mas também de pão, água, remédios, eletricidade e segurança contra bombardeios. Eles precisam se livrar de um cerco que transformou seu território em uma prisão a céu aberto. As flotilhas dramatizam essa necessidade, mas não conseguem resolvê-la. Elas apontam para a inadequação do sistema internacional, que falhou em responsabilizar Israel ou em fornecer alívio genuíno. A diplomacia, neste caso, deve ser um trampolim para uma ação mais decisiva. Se Israel continuar a bloquear a ajuda e a atacar civis, a responsabilidade recai sobre a comunidade internacional não apenas de protestar, mas de intervir — militarmente, se necessário — para evitar mais genocídios.
A história das flotilhas de Gaza nos ensina que a resistência sempre encontrará um caminho, seja por meio de barcos, comboios ou atos de sobrevivência inabalável. Dos modestos barcos Free Gaza à enorme Flotilha Global Sumud, a história é de persistência diante de uma força avassaladora. Esses navios, muitas vezes pequenos e frágeis em comparação com os navios de guerra e drones israelenses, personificam a consciência moral da humanidade. Eles podem não ter sempre entregue sua carga, mas transmitiram uma mensagem que o mundo não pode ignorar: Gaza não está sozinha e o bloqueio jamais será normalizado. O desafio agora é transformar esse testemunho moral em mudança política e material. Sem isso, as flotilhas permanecerão símbolos de coragem contra a crueldade — poderosas, mas insuficientes para deter a máquina de opressão.
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