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Um exército global para libertar a Palestina: Uma leitura investigativa do discurso do presidente colombiano Gustavo Petro

29 de setembro de 2025, às 02h24

Gustavo Petro, presidente da Colômbia, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) em Nova York, EUA, na terça-feira, 23 de setembro de 2025. [Fotógrafo: Michael Nagle/Bloomberg via Getty Images]

Em uma das intervenções políticas mais ousadas e controversas já feitas nos corredores das Nações Unidas em décadas, o presidente colombiano Gustavo Petro, em seu discurso à Assembleia Geral da ONU em 23 de setembro de 2025, defendeu a criação de um exército internacional que transcendesse o equilíbrio tradicional de poder e cuja primeira missão seria a libertação da Palestina da ocupação israelense e o fim do genocídio em curso em Gaza.

O discurso atraiu ampla atenção global, abrindo caminho para um debate complexo sobre o futuro da ordem internacional, os limites do direito internacional e a possibilidade de uma transformação fundamental em direção a uma nova arquitetura de relações internacionais que vá além da bipolaridade e da centralidade do poder dos EUA.

Petro: O fim das palavras e o início da ação

Em seu discurso, o presidente Gustavo Petro criticou duramente a ordem internacional atual, afirmando que um mundo dominado por uma única potência e cúmplice de genocídio não pode reivindicar, com credibilidade, a defesa da democracia ou dos direitos humanos. Ele enfatizou que declarações e declarações não são mais suficientes em meio aos massacres em Gaza, apelando à criação de uma força armada internacional composta por Estados que rejeitam o genocídio, encarregada de proteger as populações ameaçadas e aplicar a justiça internacional. Petro declarou: “Precisamos de um exército forte de nações que não aceitem o genocídio… Devemos reunir armas e exércitos. Devemos libertar a Palestina.”

Invocando Simón Bolívar, acrescentou: “Estamos cansados ​​de palavras… É hora da espada da liberdade ou da morte.”

Em comentários posteriores publicados em , Petro anunciou planos de submeter um projeto de resolução à Assembleia Geral da ONU para estabelecer um “exército global para a justiça”, com sua primeira missão focada na libertação da Palestina, marcando um apelo dramático à ação.

Uma mudança de paradigma na política internacional

proposta de Petro marca uma mudança significativa no discurso político internacional. Desde a fundação da ONU em 1945, as forças internacionais têm se concentrado principalmente na manutenção da paz pós-conflito, operando sob mandatos limitados e com a aprovação do Conselho de Segurança. Petro, no entanto, prevê uma força projetada não para manter o status quo, mas para alterá-lo ativamente, intervindo militarmente para prevenir o genocídio e pôr fim à ocupação. Essa transição da neutralidade para a ação desafia princípios fundamentais do direito internacional, incluindo a soberania e a não intervenção dos Estados, ao mesmo tempo em que contesta o monopólio do Conselho de Segurança, particularmente de seus cinco membros permanentes, sobre o uso autorizado da força. Petro sugeriu que tal força poderia ser estabelecida pela Assembleia Geral, referindo-se à resolução “Unidos pela Paz” de 1950, quando a Assembleia contornou um Conselho de Segurança em impasse para autorizar a intervenção militar na Coreia, estabelecendo um precedente para agir quando os mecanismos convencionais falham.

Enormes obstáculos políticos e legais

Apesar da proposta ousada de Petro, obstáculos formidáveis ​​tornam sua concretização a curto prazo altamente improvável. O arcabouço legal da ONU restringe o uso da força ao Conselho de Segurança, onde os EUA detêm poder de veto e jamais permitiriam a criação de uma força que pudesse agir contra Israel, seu principal aliado no Oriente Médio. Realidades geopolíticas também dificultam a formação de uma coalizão global fora do âmbito de segurança ocidental. Mesmo países críticos às políticas israelenses, incluindo membros da UE e Estados do Sul Global, podem resistir a se juntar a uma força que corre o risco de confronto direto com Israel ou os EUA. Além disso, há uma significativa falta de vontade política coletiva: embora Estados de pequeno e médio porte frequentemente usem retórica forte, transformar tais palavras em ação militar exige um consenso atualmente ausente. Lutas anteriores para reformar o Conselho de Segurança ou estabelecer tribunais para crimes de guerra ressaltam a dificuldade de traduzir ideias ambiciosas em ações dentro das atuais estruturas de poder arraigadas.

A importância e o momento do discurso de Petro

Apesar dos obstáculos práticos significativos, o discurso de Petro carrega profundo peso simbólico e político na formação do discurso global sobre a Palestina e a ordem internacional. Ele reformula a questão palestina a partir de um mero “conflito” para um ato de “genocídio”, deslocando o debate da negociação política para um centrado na libertação e na justiça internacional. Suas referências à “espada de Bolívar” e a um “exército da justiça” buscam colocar a Palestina no centro de uma luta mais ampla contra a duplicidade de critérios e pela legitimidade global.

Além disso, o apelo de Petro reacende o debate sobre a reforma das Nações Unidas. Além de defender uma força dedicada à Palestina, ele destaca o fracasso do sistema atual em prevenir genocídios em Ruanda, Síria, Mianmar e, agora, Gaza. O exército proposto simboliza, portanto, uma demanda mais profunda pela reconstrução da ordem internacional em bases mais justas e pluralistas.

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Finalmente, o discurso destaca uma mudança no Sul Global. Da Colômbia à África do Sul e ao Brasil, Estados na periferia geopolítica estão cada vez mais usando o palco da ONU para desafiar o domínio do Norte Global e redefinir conceitos de legitimidade. A mensagem de Petro se alinha a esse momento, adicionando nova profundidade estratégica à causa palestina dentro de alianças internacionais emergentes.

Justiça na era do genocídio

O discurso do presidente Petro ocorre em um momento crítico, enquanto Gaza enfrenta uma das campanhas militares israelenses mais brutais desde a Nakba. Agências da ONU e organizações de direitos humanos, incluindo OCHA, Oxfam e Human Rights Watch, relatam a morte de dezenas de milhares de civis e a destruição generalizada de infraestrutura vital, incluindo hospitais, escolas e centros de assistência. A ONU também documentou a morte de centenas de trabalhadores humanitários, no que organizações internacionais descrevem como o maior ataque ao setor humanitário em conflitos modernos.

Nesse contexto, o discurso de Petro torna-se mais do que uma proposta teórica, é um grito contra um mundo que permanece em silêncio diante do genocídio. Seu apelo para formar um “exército da justiça” é, em sua essência, uma expressão do fracasso do sistema internacional em cumprir seu dever mais fundamental: proteger civis e fazer cumprir o direito internacional.

E embora a ideia possa ser inatingível no momento, ela expõe a gritante lacuna entre a retórica da ONU e sua realidade, abrindo caminho para repensar os mecanismos de ação internacional coletiva.

Conclusão

O projeto do Presidente Petro de formar um exército internacional para libertar a Palestina pode parecer, no equilíbrio da realpolitik, um sonho utópico difícil de alcançar em meio à atual dinâmica de poder. No entanto, no âmbito da política simbólica e estratégica, reflete uma profunda mudança na forma como a justiça internacional, a Palestina e a própria ordem global são concebidas.

O discurso não mudará o mundo amanhã, mas poderá marcar um ponto de virada em uma trajetória mais longa rumo à reformulação das instituições internacionais para que sejam capazes de enfrentar o genocídio e a injustiça. E assim como as palavras de Simón Bolívar desencadearam a libertação de continentes inteiros, o discurso do presidente Petro pode, mesmo que apenas a longo prazo, ser a faísca que levará o mundo a contemplar um exército global pela justiça, cuja primeira missão começaria em Gaza, se Gaza, como a conhecemos, ainda existir.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.