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Um apelo aos líderes mundiais: A ONU deve agir sobre Gaza ou arriscar seu fim

29 de setembro de 2025, às 09h00

Brasão das Nações Unidas durante 80ª Assembleia Geral, em Nova York, 22 de setembro de 2025 [Celal Günes/Agência Anadolu]

A 80ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas reuniu, em Nova York, emissários e líderes de todo o mundo em nome de nossa humanidade compartilhada.

Como um colega que já esteve entre esses corredores, em busca da paz e de uma ordem mundial estável, me dirijo a vocês com um apelo franco e urgente.

Em Gaza, dois milhões de pessoas vivem uma catástrofe que desafia toda a humanidade: dezenas de milhares foram assassinadas, em maioria mulheres e crianças, com escolas, hospitais e abrigos reduzidos a escombros. Enquanto isso, comida, medicamento e água são negados deliberadamente.

A Comissão de Inquérito das Nações Unidas confirmou recentemente que Israel comete genocídio em Gaza. A situação não é apenas uma catástrofe humanitária, mas um ponto de inflexão para as Nações Unidas, cujas ações podem decidir sua própria legitimidade e sobrevivência.

Este acerto de contas vem em um momento em que seu Conselho de Segurança continua paralisado, preso pela rivalidade sem princípios entre seus cinco membros permanentes — paralisia esta que tornou a missão da Assembleia Geral ainda mais importante do que nunca.

Como órgão que representa a mais ampla expressão de vontade coletiva da humanidade, a Assembleia Geral deve agora deixar a sombra do Conselho e agir de maneira decisiva a preservar a dignidade, credibilidade e autoridade da ONU.

O encontro deste ano não é somente entre representantes das nações, mas guardiões de toda a consciência humana. Hoje, o mundo se vê em uma encruzilhada.

Os princípios fundadores da ONU — dignidade humana, equidade soberana e segurança coletiva — vivem um ataque sem precedentes.

Sua Carta fundadora começa assim: “Nós, os povos das Nações Unidas, determinados a preservar as próximas gerações do flagelo da guerra, reafirmamos a nossa fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, bem como direitos iguais entre nações grandes e pequenas”.

O juramento, no entanto, foi quebrado.

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Colapso moral

A catástrofe em Gaza é um colapso moral que transcorre diante dos olhos do mundo. Ao mesmo tempo, é uma mudança perturbadora nas atitudes globais em normalizar tanto a linguagem quanto a lógica da guerra.

A recente decisão do governo de rebatizar o Departamento de Defesa dos Estados Unidos como Departamento de Guerra não é apenas uma mudanças de viés administrativo, mas abre mão do pretexto de defesa para glorificar a agressão.

A história mostra onde leva esse caminho. Antes da Segunda Guerra Mundial, as maiores potências glorificaram a guerra: o Reichskriegsministerium da Alemanha, Ministero della Guerra da Itália, o Rikugun-sho do Japão e Ministere de la Guerre da França.

Após 1945, a comunidade internacional passou a rejeitar essa mentalidade, ao instilar um compromisso declarado de defesa, em vez da hostilidade, sobre os alicerces da ordem do pós-guerra. Reverter o consenso arrisca desmantelar, agora, um quadro frágil e substitui-lo pela lei da selva.

É essa reviravolta belicista que encoraja e legitima as implacáveis agressões de Israel, de Gaza e Cisjordânia, a Líbano, Síria, Iêmen, Irã e mesmo Catar. Essas ações, presume-se, ocorreram sob aval direto ou indireto dos Estados Unidos, ao fomentar um grave risco de conflagração regional capaz de desestabilizar todo o sistema internacional.

Não se trata de mais uma crise. É um teste aos princípios sobre os quais se fundou a ONU — para líderes globais, para a instituição e para a humanidade como um todo.

Um sistema em colapso

A ONU foi concebida como plataforma neutra e independente, livre das manipulações de quaisquer potências ou alianças individuais. Sua legitimidade repousa em três princípios fundamentais: equidade soberana entre as nações, universalidade da dignidade humana, e responsabilidade coletiva em nome da paz e segurança mundiais.

Hoje, entretanto, esses ideais estão sob ameaça. Os Estados Unidos, como país anfitrião, negaram os vistos ao presidente palestino Mahmoud Abbas e sua delegação, ao obstruir sua participação na Assembleia Geral. Trata-se de violação do Acordo de Sede da ONU de 1947, que garante acesso desimpedido a todos.

Neste contexto, reiterados vetos no Conselho de Segurança paralisaram a ONU, ao anuir aplicação seletiva da lei internacional e aprofundar noções de viés institucional.

A história nos alerta das consequências do colapso das instituições internacionais. A Liga das Nações implodiu por não agir decisivamente contra agressões na Manchúria (1931), Abissínia (1935) e Tchecoslováquia (1938). Repúdio sem ações devidas e apreensão sem responsabilidade convidaram a catástrofe e, dentro de uma década, o mundo mergulhou em uma guerra devastadora sem igual.

A ONU nasceu precisamente para evitar esse destino, construída para garantir segurança coletiva, participação igual e proteção a valores universais — e não como instrumento de disputas geopolíticas.

Caso falhe decisivamente diante de Gaza, arrisca compartilhar o declínio e a irrelevância da Liga das Nações.

Ações decisivas

Apesar dos fracassos, a história também pode nos dar alguma esperança.

Em 1988, quando Washington negou o visto de Yasser Arafat, então líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), para discursar em Nova York, Assembleia Geral, as Nações Unidas agiram com coragem e determinação, ao relocarem a sessão a Genebra, em 13 de dezembro. Essa decisão ousada reforçou a independência institucional da ONU e sua recusa em permitir sabotagem pelo país anfitrião.

O mesmo é preciso hoje.

Diante da negative à presença palestina, a Assembleia deveria ser transferida a uma sede neutra, para assegurar inclusão e justiça.

Passos mais importantes, contudo, deveriam ser tomados para proteger os civis em Gaza e reaver a credibilidade perdida do sistema internacional.

Isso requer a convocatória de uma Sessão Especial de Emergência sob o enquadramento de União para a Paz, ao trespassar a paralisia do Conselho de Segurança. Exigiria ainda o estabelecimento de um corredor humanitário para garantir o fluxo de alimentos, remédios e água; asseverar a proteção a comboios humanitários, clínicas e iniciativas civis em mar, como a Flotilha Global Sumud; e apoiar investigações independentes sobre violações das leis internacionais, a serem julgadas pelo Tribunal Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional e outros mecanismos, sem maior procrastinação.

Diante da demanda por tais esforços, noto a eleição de Annalena Baerbock a presidente da 80ª Assembleia Geral. Os desafios que se impõem ao seu mandato são formidáveis e, com eles, vem a responsabilidade de demonstrar liderança. Desejo boa sorte a ela diante desses testes, em uma encruzilhada histórica.

A história nos julgará não pelas nossas declarações, mas ações — e por nosso silêncio.

A tragédia em Gaza e a erosão das estruturas internacionais são um desafio existencial a nossa humanidade coletiva. Caso a ONU falhe, agravará o sofrimento e acelerará o fim da ordem global, a qual foi criada para proteger.

Caros líderes, peço que ajam com urgência moral: Gaza não pode esperar; a humanidade não pode esperar; a história não perdoará sua demora.

Com esperança e determinação,

Ahmet Davutoglu

Ex-primeiro-ministro da Turquia

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 21 de setembro de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.