A 80ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas reuniu, em Nova York, emissários e líderes de todo o mundo em nome de nossa humanidade compartilhada.
Como um colega que já esteve entre esses corredores, em busca da paz e de uma ordem mundial estável, me dirijo a vocês com um apelo franco e urgente.
Em Gaza, dois milhões de pessoas vivem uma catástrofe que desafia toda a humanidade: dezenas de milhares foram assassinadas, em maioria mulheres e crianças, com escolas, hospitais e abrigos reduzidos a escombros. Enquanto isso, comida, medicamento e água são negados deliberadamente.
A Comissão de Inquérito das Nações Unidas confirmou recentemente que Israel comete genocídio em Gaza. A situação não é apenas uma catástrofe humanitária, mas um ponto de inflexão para as Nações Unidas, cujas ações podem decidir sua própria legitimidade e sobrevivência.
Este acerto de contas vem em um momento em que seu Conselho de Segurança continua paralisado, preso pela rivalidade sem princípios entre seus cinco membros permanentes — paralisia esta que tornou a missão da Assembleia Geral ainda mais importante do que nunca.
Como órgão que representa a mais ampla expressão de vontade coletiva da humanidade, a Assembleia Geral deve agora deixar a sombra do Conselho e agir de maneira decisiva a preservar a dignidade, credibilidade e autoridade da ONU.
O encontro deste ano não é somente entre representantes das nações, mas guardiões de toda a consciência humana. Hoje, o mundo se vê em uma encruzilhada.
Os princípios fundadores da ONU — dignidade humana, equidade soberana e segurança coletiva — vivem um ataque sem precedentes.
Sua Carta fundadora começa assim: “Nós, os povos das Nações Unidas, determinados a preservar as próximas gerações do flagelo da guerra, reafirmamos a nossa fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, bem como direitos iguais entre nações grandes e pequenas”.
O juramento, no entanto, foi quebrado.
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Colapso moral
A catástrofe em Gaza é um colapso moral que transcorre diante dos olhos do mundo. Ao mesmo tempo, é uma mudança perturbadora nas atitudes globais em normalizar tanto a linguagem quanto a lógica da guerra.
A recente decisão do governo de rebatizar o Departamento de Defesa dos Estados Unidos como Departamento de Guerra não é apenas uma mudanças de viés administrativo, mas abre mão do pretexto de defesa para glorificar a agressão.
A história mostra onde leva esse caminho. Antes da Segunda Guerra Mundial, as maiores potências glorificaram a guerra: o Reichskriegsministerium da Alemanha, Ministero della Guerra da Itália, o Rikugun-sho do Japão e Ministere de la Guerre da França.
Após 1945, a comunidade internacional passou a rejeitar essa mentalidade, ao instilar um compromisso declarado de defesa, em vez da hostilidade, sobre os alicerces da ordem do pós-guerra. Reverter o consenso arrisca desmantelar, agora, um quadro frágil e substitui-lo pela lei da selva.
É essa reviravolta belicista que encoraja e legitima as implacáveis agressões de Israel, de Gaza e Cisjordânia, a Líbano, Síria, Iêmen, Irã e mesmo Catar. Essas ações, presume-se, ocorreram sob aval direto ou indireto dos Estados Unidos, ao fomentar um grave risco de conflagração regional capaz de desestabilizar todo o sistema internacional.
Não se trata de mais uma crise. É um teste aos princípios sobre os quais se fundou a ONU — para líderes globais, para a instituição e para a humanidade como um todo.
Um sistema em colapso
A ONU foi concebida como plataforma neutra e independente, livre das manipulações de quaisquer potências ou alianças individuais. Sua legitimidade repousa em três princípios fundamentais: equidade soberana entre as nações, universalidade da dignidade humana, e responsabilidade coletiva em nome da paz e segurança mundiais.
Hoje, entretanto, esses ideais estão sob ameaça. Os Estados Unidos, como país anfitrião, negaram os vistos ao presidente palestino Mahmoud Abbas e sua delegação, ao obstruir sua participação na Assembleia Geral. Trata-se de violação do Acordo de Sede da ONU de 1947, que garante acesso desimpedido a todos.
Neste contexto, reiterados vetos no Conselho de Segurança paralisaram a ONU, ao anuir aplicação seletiva da lei internacional e aprofundar noções de viés institucional.
A história nos alerta das consequências do colapso das instituições internacionais. A Liga das Nações implodiu por não agir decisivamente contra agressões na Manchúria (1931), Abissínia (1935) e Tchecoslováquia (1938). Repúdio sem ações devidas e apreensão sem responsabilidade convidaram a catástrofe e, dentro de uma década, o mundo mergulhou em uma guerra devastadora sem igual.
A ONU nasceu precisamente para evitar esse destino, construída para garantir segurança coletiva, participação igual e proteção a valores universais — e não como instrumento de disputas geopolíticas.
Caso falhe decisivamente diante de Gaza, arrisca compartilhar o declínio e a irrelevância da Liga das Nações.
Ações decisivas
Apesar dos fracassos, a história também pode nos dar alguma esperança.
Em 1988, quando Washington negou o visto de Yasser Arafat, então líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), para discursar em Nova York, Assembleia Geral, as Nações Unidas agiram com coragem e determinação, ao relocarem a sessão a Genebra, em 13 de dezembro. Essa decisão ousada reforçou a independência institucional da ONU e sua recusa em permitir sabotagem pelo país anfitrião.
O mesmo é preciso hoje.
Diante da negative à presença palestina, a Assembleia deveria ser transferida a uma sede neutra, para assegurar inclusão e justiça.
Passos mais importantes, contudo, deveriam ser tomados para proteger os civis em Gaza e reaver a credibilidade perdida do sistema internacional.
Isso requer a convocatória de uma Sessão Especial de Emergência sob o enquadramento de União para a Paz, ao trespassar a paralisia do Conselho de Segurança. Exigiria ainda o estabelecimento de um corredor humanitário para garantir o fluxo de alimentos, remédios e água; asseverar a proteção a comboios humanitários, clínicas e iniciativas civis em mar, como a Flotilha Global Sumud; e apoiar investigações independentes sobre violações das leis internacionais, a serem julgadas pelo Tribunal Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional e outros mecanismos, sem maior procrastinação.
Diante da demanda por tais esforços, noto a eleição de Annalena Baerbock a presidente da 80ª Assembleia Geral. Os desafios que se impõem ao seu mandato são formidáveis e, com eles, vem a responsabilidade de demonstrar liderança. Desejo boa sorte a ela diante desses testes, em uma encruzilhada histórica.
A história nos julgará não pelas nossas declarações, mas ações — e por nosso silêncio.
A tragédia em Gaza e a erosão das estruturas internacionais são um desafio existencial a nossa humanidade coletiva. Caso a ONU falhe, agravará o sofrimento e acelerará o fim da ordem global, a qual foi criada para proteger.
Caros líderes, peço que ajam com urgência moral: Gaza não pode esperar; a humanidade não pode esperar; a história não perdoará sua demora.
Com esperança e determinação,
Ahmet Davutoglu
Ex-primeiro-ministro da Turquia
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 21 de setembro de 2025
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