Diante da guerra de Israel contra toda a região, árabes enfim parecem reagir

David Hearst
2 meses ago

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Cúpula árabe-islâmica em Doha, no Catar, em 15 de setembro de 2025 [Murat Kula/Agência Anadolu]

Antes de partir em uma missão suicida para atirar em soldados israelenses na Ponte Allenby, a principal travessia entre Israel e Jordânia, Abdul-Muttalib al-Qaisi escreveu um testamento. Nele, disse: “Ó filhos da minha Umma [nação], até quando ficaremos em silêncio sobre aqueles que ocupam as terras? Ficaremos em silêncio até que [isso] chegue à nossa terra e viole seus santuários?”

Al-Qaisi, e antes dele Mahir al-Jazi, outro jordaniano que atacou forças israelenses no posto fronteiriço no ano passado, não são palestinos. São da margem leste do rio Jordão.

Sua mensagem se direcionava para “as pessoas honradas e livres em todos os lugares, sobretudo nossos irmãos árabes no Al-Sham: Jordânia, Palestina, Síria e Líbano.” Era esta: o que está acontecendo em Gaza se repetirá em seus países. Nosso silêncio é cumplicidade. Não façam nada e a Grande Israel virá até nós.

Se esta mensagem representa — como parece — um estado de espírito que se estende muito além dos arredores de Amã, onde foi escrita, então Israel se pôs diante de um erro de cálculo de proporções históricas.

Israel: Perigo existencial

A persistente retórica do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e de Bezalel Smotrich, seu ministro das Finanças e pró-cônsul de fato da Cisjordânia ocupada, de que Israel será o único estado a oeste do rio Jordão, atrai atenção e cria alarme muito além das fronteiras da Palestina.

A ameaça que Israel representa à região independe de alianças, políticas, identidade tribal ou religião.

Quase dois anos de genocídio israelense em Gaza coincidiram com a destruição de partes do Líbano, a ocupação do sul da Síria, e o assassinato sumário, por aviões militares, do primeiro-ministro do Iêmen, Ahmed Ghaleb Nasser al-Rahawi, como da alta liderança militar do Irã.

Israel não é mais um perigo existencial apenas ao povo palestino, mas a todos os Estados da região.

Tente negociar com Israel e seus aviões de guerra mirarão em suas equipes de negociação, como fizeram agora duas vezes: quando atacaram o Irã antes de conversas em Omã, e então contra a equipe de negociação do Hamas em Doha, no Catar.

Embriagado com o poder, ou tão desesperado para se manter nele que manter uma guerra perpétua é sua única opção, Netanyahu acredita que pode impor à força as novas fronteiras de seu país.

Israel nunca mais terá um presidente americano mais permissivo do que tem agora em Donald Trump. Este já permitiu que anexasse as colinas ocupadas de Golã, pertencentes à Síria, reconheceu Jerusalém como a capital indivisa do “Estado judeu”, e agora auxilia Israel a arrasar de vez a Cidade de Gaza.

Tampouco terá uma gestão americana tão dominada por fundamentalistas cristãos. Ao comentar sobre um túnel escavado debaixo de casas palestinas de Silwan, bairro de Jerusalém Oriental ocupada, Mike Huckabee, embaixador americano, descreveu a cidade como “capital indivisível, indiscutível e indígena [sic] do povo judeus [sic], desde a eternidade”.

“Foi aqui há quatro mil anos, no Monte Moriá, onde Deus escolheu Seu povo”, insistiu Huckabee. “Não apenas escolheu um povo, mas escolheu um lugar para Seu povo com este propósito. O povo era o povo judeu. O lugar era Israel, e o propósito era ser uma luz para todo o mundo.”

Para Huckabee, não há áreas cinzentas neste conflito. Trata-se de Bem contra o Mal: “Você não apoia Israel porque concorda com o governo deles … Você apoia Israel porque Israel defende uma tradição do Deus de Abraão.”

Este é o delírio de um homem designado embaixador.

Guerra religiosa

Mas o delírio não são tanto as divagações de um mero fundamentalista evangélico, mas sim o tiro de partida a uma guerra religiosa.

Ao buscar a vitória total sobre uma região de maioria islâmica então humilhada, Netanyahu está cometendo o erro que muitos líderes belicistas cometeram antes dele, como Hitler e Napoleão, derrotados ao atacarem a Rússia.

Netanyahu crê que os 7,7 milhões de colonos judeus na Palestina histórica podem dominar os 473 milhões de árabes no Oriente Médio e Norte da África, os 92 milhões de iranianos, ou, por que não, os dois bilhões de muçulmanos em todo mundo.

É isso que sua evocação da “Super Esparta” significa.

Porque, conforme progrediu a guerra, a campanha de Israel se distanciou cada vez mais de suposta intenção de eliminar um grupo armado que o atacou, cada vez mais concentrada em extinguir, abertamente, todo e qualquer adversário regional, a começar pelo Irã e então a Turquia.

A “Super Esparta” de Netanyahu desafia a soberania de todos os Estados-nação, jovens ou velhos, perto ou longe de suas novas fronteiras. A ameaça que Israel representa à região independe de alianças, políticas, identidade tribal ou religião.

Tomemos um Estado jovem como os Emirados Árabes Unidos. Rico e mobilizado a enfrentar o Islã político com um secularismo autocrático armado, que passou a última década financiando e armando contrarrevoluções à Primavera Árabe no Iêmen, Egito, Líbia e Tunísia, para além de tentar destituir um presidente na Turquia. Hoje, os Emirados alimentam a guerra civil no Sudão, ao armar o grupo paramilitar conhecido como Forças de Apoio Rápido (RSF) e bancar seus líderes.

Seu presidente, Mohammed bin Zayed, foi um dos primeiros líderes árabes a perceber onde estaria o verdadeiro caminho para o poder. Orientou um príncipe saudita desconhecido a fazer visitas secretas a Netanyahu, abrindo caminho a ele rumo ao reconhecimento pela dinastia Trump. Esse homem é agora governante de facto de seu reino, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.

Ônus político

Os Emirados Árabes Unidos foram o primeiro país a assinar os Acordos de Abraão, que reconheceram Israel, e deveriam ser o último país a se retirar deles. No entanto, a atmosfera em Abu Dhabi azedou recentemente.

O conselheiro político emiradense, Abdulkhaleq Abdulla, tuitou: “Pela primeira vez, uma conversa séria sugere que é hora de congelar os Acordos de Abraão. O acordo está se tornando um ônus político, não um ativo estratégico.”

Ou Khalaf Ahmad al-Habtoor, fundador de um conglomerado emiradense responsável por documento de pesquisa sobre como prejudicar a economia israelense, após os ataques a Doha. O estudo de seu Centro de Pesquisa Habtoor indica que a economia de Israel poderia perder entre US$ 28 bilhões e US$ 33,5 bilhões com uma decisão árabe unificada de fechar seu espaço aéreo a todo o tráfego aéreo israelense.

“A mensagem é simples e clara: com uma única decisão, temos a capacidade de enfraquecer a economia de Israel, desestabilizar seus fundamentos e forçar seus líderes a reconsiderarem seus cálculos, sem entrar em um ciclo de violência ou derramamento de sangue”, argumentou. “Apelo aos tomadores de decisão que revisem os números: fechar o espaço aéreo, reavaliar investimentos e interesses e ativar mecanismos de coordenação econômica unificada que priorizem a proteção de nosso povo e soberania.”

Nenhum dos dois está improvisando no momento. Abu Dhabi não é um lugar conhecido por pensamentos particularmente visionários sobre política externa.

Agora tomemos o Egito, um dos Estados-nação mais antigos do mundo.

Na cúpula de emergência em Doha, uma semana após o ataque, o presidente egípcio Abdel Fattah el-Sisi descreveu Israel como “inimigo”, primeira vez que usa essa linguagem desde que assumiu o cargo em 2014.

As relações entre Israel e o primeiro Estado árabe a reconhecê-lo seguem em declínio, desde que as forças israelenses ocuparam a travessia fronteiriça de Rafah e assumiram o controle do Corredor de Filadélfia, que separa Gaza do Egito.

O plano de Netanyahu de forçar mais de um milhão de palestinos ao sul, em direção ao Sinai, é tratado como ameaça direta à segurança nacional egípcia. Esse medo foi agravado pelas ameaças de Israel de atingir líderes do Hamas na cidade do Cairo.

Sisi alertou os eleitores israelenses que as políticas de seu governo “corroem as oportunidades de quaisquer novos acordos de paz e até mesmo podem anular os acordos de paz existentes”.

Não são apenas palavras. Netanyahu reclamou a Trump que os militares egípcios estenderam pistas de pouso no Sinai a serem usadas por jatos militares e construíram depósitos subterrâneos para supostamente armazenar mísseis. Não há evidências, até o momento, de que isso realmente esteja acontecendo. Mas a alegação por si só amplifica tensões e aponta ao pano de fundo a um ataque israelense no futuro próximo.

Nenhum plano para esvaziar Gaza de metade de sua população teria sucesso sem o Egito. À medida que mais e mais palestinos são forçados a ir para o sul, o Sinai está cada vez mais firmemente na mira militar de Israel.

Ameaças à Jordânia

Um debate semelhante ocorre na Jordânia, segundo país árabe a assinar um acordo de paz com Israel, sobre o valor atual de Wadi Araba.

Novamente, isso tem menos a ver com uma reavaliação do Hamas ou da Irmandade Muçulmana, contra os quais o reino mantém repressão, e mais com ameaças à estabilidade do próprio país.

Como notou o comentarista jordaniano Maher Abu Tair: “Os Acordos de Oslo provaram ser nada mais do que uma armadilha para extrair o reconhecimento da legitimidade de Israel, reunir combatentes palestinos de todo o mundo e submetê-los à vigilância do ocupante. Em contraste, perguntamos: e o destino do Acordo de Wadi Araba? Constitui de fato uma garantia da segurança e estabilidade estratégica da Jordânia? E quem são seus avalistas, em primeiro lugar, uma vez que vimos os garantidores de Oslo assistirem à sua extinção, eles próprios seus traidores.”

Ecoando o que está rapidamente se tornando opinião consolidada em Amã, Abu Tair disse que a Jordânia poderia ser atacada de duas formas: por sua custódia da Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém ocupada – submetida a um nível sem precedentes de incursões de colonos – e pela Cisjordânia. Deste modo, Israel poderia fabricar um incidente de segurança na fronteira como desculpa para reocupar o sul da Jordânia.

Para Abu Tair, os jordanianos estão apreensivos com a possibilidade de Israel deflagrar um êxodo da Cisjordânia, revogando as residências de centenas de milhares de palestinos que ainda possuem números de identidade nacional jordanianos, da época em que o território ainda integrava o reino hachemita, antes da guerra de 1967.

A segunda coisa que Israel poderia tentar é uma tentativa de desestabilizar o próprio Estado, o que deixaria suas fronteiras abertas.

Qualquer uma das opções produziria o espaço necessário para o reassentamento dos palestinos forçados a sair da Cisjordânia.

Netanyahu foi curiosamente específico em sua resposta ao reconhecimento do Estado da Palestina pelo Reino Unido, França e outros. Disse que Israel não deveria permitir a criação de um Estado palestino a oeste do rio Jordão — poderia haver, portanto, algo similar a leste dele.

Novas alianças

Os líderes árabes, no entanto, não seguiram ociosos. Alianças de defesa estão sendo seriamente consideradas, o que seria impensável há cerca de dez anos.

Em 2016, a mídia saudita foi colocada em standby para anunciar a morte do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, em um golpe militar. Erdogan sobreviveu, mas o golpe quase obteve sucesso. Dois anos depois, as duas potências regionais se desentenderam sobre o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi dentro do consulado da Arábia Saudita em Istambul.

A Turquia entregou um áudio de seu assassinato à CIA e acusou consistentemente o próprio príncipe herdeiro de ordenar o crime. Isso continuou por três anos, incluindo ostracismo de bin Salman nas capitais ocidentais.

Considere o degelo nas relações que ocorreu desde então.

Dois anos atrás, a Arábia Saudita assinou um acordo com o fabricante turco de drones Baykar, considerado o maior contrato de exportação de defesa da história da Turquia. Riad se mostra interessada agora no tanque Altay e seu sistema de mísseis, e em se tornar um parceiro no caça furtivo Kaan.

Um relatório do Atlantic Council observou que o interesse de Riad no Kaan decorre de suas tentativas, há muito adiadas, de adquirir jatos F-35 fabricados pelos Estados Unidos – tecnologia que Israel usou para atacar o Irã e que impede Washington de vender a qualquer outro país da região.

Da mesma forma, Turquia e Egito – rivais de longa data, não apenas sobre o lugar do Islã político e da Irmandade Muçulmana, mas em reivindicações marítimas opostas no Mediterrâneo Oriental – experimentaram semelhante degelo. O Egito também tem interesse no Kaan, como coprodutor. Ambos os países realizarão em breve exercícios navais conjuntos, pela primeira vez em 13 anos.

A Arábia Saudita também se volta a leste em busca de pactos de defesa. Na fluidez atual, seu pacto de defesa mútua com o Paquistão, armado nuclearmente, não pode ser subestimado. Este seguia preparo há algum tempo, certamente antes do atual primeiro-ministro paquistanês, Shehbaz Sharif, assumir o poder. Todavia, o momento do anúncio de um pacto com a única potência nuclear de maioria islâmica, dias após o ataque israelense a Doha, emite uma mensagem inconfundível.

Atrás do Paquistão está a China, o que tampouco passou despercebido em Washington.

E então há a própria Turquia. Não só uma Ancara naturalmente cautelosa se vê em desacordo com Israel sobre sua ocupação do sul da Síria e, especialmente agora, suas barragens; não só Israel se auto nomeou custódio dos drusos no sul e dos curdos no norte, o que em algum momento poderia entrar em conflito direto com o processo de paz de Ancara com o PKK, como agora intervém também no Chipre.

Israel entregou defesas aéreas Barak MX ao Chipre, mais eficazes que os S-300 russos e que podem rastrear forças aéreas e terrestres turcas no Mediterrâneo Oriental.

Shay Gal, ex-vice-presidente de relações externas da Indústria Aerospacial de Israel (IAI), fabricante do Barak MX, argumentou em julho que seu país deveria reavaliar sua abordagem em relação a Chipre e elaborar planos militares para “libertar” o norte da ilha das forças turcas.

“Israel, em coordenação com a Grécia e Chipre, deve preparar uma operação de contingência para libertar o norte”, escreveu Gal.

De toda a parte, estes são sinais claros de que a região se prepara para reagir às ambições hegemônicas de Israel. Na disso será imediato, muito menos uniforme.

A desunião árabe foi a rocha sobre a qual o projeto de se criar um Estado colonial na Palestina histórica se construir. Seria ingênuo, no entanto, pensar que a situação duraria para sempre, à medida que a pequena Esparta se torna cada vez maior.

Israel embarcou de vez em sua expansão pela força bruta. E apenas uma força diplomática, econômica e militar combinada de toda a região e além poderá ser capaz de detê-lo.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 24 de setembro de 2025

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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