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Jornada dos sonhos: Abraçando a música na cultura indo-islâmica do Paquistão

Asif Hasnain, cofundador do projeto musical The Dream Journey, comenta como o Islã e a cultura deram forma à cena musical contemporânea do Paquistão

24 de setembro de 2025, às 01h47

Asif Hasnain (à esquerda, à frente) e outros membros do projeto The Dream Journey, durante performanece musical de Ustads Abu Muhammad e Fareed Ayaz [Divulgação]

Um problema do Islã, gracejou certa vez um músico clássico hindu, é que ele “rebaixara a música”. Ustad Bismillah Khan, devoto muçulmano e maestro do oboé do norte da Índia, respondeu com um brilho malicioso nos olhos: “Como sabe, a maioria dos melhores músicos daqui são muçulmanos. Consegue imaginar o que teria acontecido se o Islã tivesse promovido a música?”

Todos os presentes, hindus e muçulmanos, caíram na gargalhada.

A complexa relação do Islã com a música influenciou profundamente essa forma de arte no Sul da Ásia. Ela ajudou a moldar a indústria musical na Índia, mas no vizinho Paquistão deixou uma pegada decisiva. Lá, o debate sobre a música perdura há décadas como parte de uma luta profunda pela identidade nacional paquistanesa.

Foi no meio dessas contendas, há mais de uma década, que um pequeno grupo de entusiastas da música paquistanesa, alguns vivendo no exterior, se conheceu online.

Em 2014, decidiram viajar juntos por seu país de origem para documentar suas tradições musicais há muito ignoradas.

O projeto resultante, batizado de The Dream Journey (A Jornada do Sonho), levou o grupo a publicar vídeos no YouTube, com legendas em inglês, de músicos e famílias de músicos tocando, o que é incomum, em suas próprias casas. Eles executam peças menos conhecidas, muitas vezes especialidades da família.

O grupo fez cinco viagens pelo Paquistão, com duração de duas semanas cada, entre 2014 e 2019, parando durante a pandemia de covid-19.

Continuaram a publicar vídeos ao longo dos anos, e o canal do YouTube não parou de crescer. Pouco depois do lançamento, o público mundial ficou encantado — seus vídeos receberam milhões de visualizações e uma enorme comunidade de fãs online se desenvolveu.

Hoje, o canal tem mais de 225 mil inscritos, um número impressionante a um projeto autofinanciado focado no que é decididamente uma música não-pop.

Algumas das gravações no canal apresentam música clássica do norte da Índia; muitas retratam o qawwali, a execução musical de poesia mística islâmica, em geral em urdu, persa ou punjabi.

“Nunca sonhámos que esse projeto teria tanto sucesso”, destacou Asif Hasnain, de 76 anos, um dos cofundadores, radicado em Viena, ao Middle East Eye. “Quando atingimos, pela primeira vez, duzentas mil visualizações, fomos todos surpreendidos, dizendo ‘Meu Deus’. Depois, simplesmente descolou.”

Alguns tipos de música lutam para sobreviver no Paquistão, indicou Hasnain, no meio de conflitos sobre religião e identidade nacional.

“O debate eterno no Paquistão é se você é um muçulmano ‘do Oriente Médio’ ou um muçulmano ‘indiano’. E a porção indo-islâmica da identidade paquistanesa é sistematicamente erodida”, acrescentou. Isso, argumentou, teve um impacto tremendo no desenvolvimento da música nacional.

Islã e música

O estado da música no Islã é sempre objeto de um debate vigoroso. Juristas geralmente defendem restrições à música, que variam da proibição total à interdição da música não-devocional, ou ainda proibição de certos instrumentos.

Ao longo da história, porém, a música exerceu um papel proeminente nas sociedades islâmicas. Este é o paradoxo apontado por Bismillah Khan, maestro do oboé.

O grande poeta-filósofo medieval Amir Khusraw — considerado “figura fundamental da tradição musical dos muçulmanos do Sul da Ásia” — não foi exceção em sua convicção de que a música seria um meio para alcançar a proximidade com Deus.

Khusraw é reconhecido não somente como inventor da tablah, ou tambor indiano, e da cítara, mas como figura chave no desenvolvimento do raag, estrutura melódica essencial ao khayal, a música clássica do norte da Índia.

Com o seu nome derivado da palavra árabe para “imaginação”, o khayal se desenvolveu a partir de uma forma musical antiga chamada dhrupad. Entrou nos círculos cortesãos do império Mughal no início do século XVII através dos qawwals, intérpretes de qawwali.

“O qawwali evoluiu da prática sufista”, detalhou Hasnain, “e assumiu as cores e formas musicais do ambiente indiano a seu redor. O khayal e o qawwali eram gémeos, e depois seguiram cada qual seu caminho”.

Contudo, mantiveram-se sempre interligados, como se demonstra no legado do lendário músico clássico e qawwal ustad Munshi Raziuddin Khan — ustad significa “mestre” —, falecido em 2003. Raziuddin, a quem Hasnain conheceu pessoalmente, traçava a sua ascendência a um discípulo de Khusraw. Seu avô, Taan Rus Khan, foi o músico da corte do último imperador Mughal, no século XIX.

Após a destruição de Delhi Mughal pelas mãos dos britânicos em 1857, a família se mudou ao estado principesco do sul, Haiderabade. Na sua juventude, Raziuddin serviu ao nizam, o governante abastado da província.

“Todos os músicos precisavam de patrocínio”, recordou Hasnain, “quer de príncipes, quer de latifundiários ricos, ou só Deus sabe de quem”.

Depois, veio a partilha de 1947, que ditou a criação da Índia e do Paquistão modernos e a destruição dos estados principescos. Muitos dos músicos muçulmanos de Haiderabade, incluindo Raziuddin, fugiram ao Paquistão.

A vida era difícil e Raziuddin não tinha dinheiro. “Ele vivia em circunstâncias dificílimas”, destacou Hasnain, “mas havia uma certa densidade no homem, uma confiança em si e em Deus, e um conhecimento enorme de música e filosofia que não vi em mais ninguém”.

‘O último dos grandes qawwals’

Hasnain notou uma antologia de gravações de Raziuddin e outros qawwals de 1969.  Ouvir essas performances — suas vozes sublimes, seus coros extáticos, as notas suaves dos harmônios, a intrincada poesia persa e urdu — é como desbravar um mundo perdido.

“Esta, na minha opinião, é a forma mais bela de qawwali porque está enraizada na forma clássica”, comentou Hasnain. “Filosófica, poética e musicalmente, é bastante profunda. Já não se canta mais. Nunca mais ouvi nada parecido. Foram os últimos dos grandes qawwals clássicos”.

Este tipo de música pode ter se perdido, mas seu Dream Journey divulgou consideravelmente o trabalho dos pupilos de Raziuddin. Entre eles, seu sobrinho, ustad Naseeruddin Saami, um dos últimos expoentes vivos da escala microtonal.

Saami consegue cantar nada menos que 49 notas — o modo musical ocidental consiste em apenas sete.

“O som é o início do próprio universo”, acredita Saami. “Alá disse ‘Sê’ e o universo veio à existência. Esse é o seu poder”.

Muitos dos maiores sucessos do canal apresentam o grupo de qawwali dos ustads Fareed Ayaz e Abu Muhammad, filhos de Raziuddin. Quando jovem, Abu Muhammad ficou brevemente farto do qawwali e pensou em fazer outra coisa na música. “Seja o que for que decidas”, disse-lhe o pai, solenemente, “não contribuas para a destruição deste grande legado”. Então decidiu ficar.

“Eles ampliaram o andamento e inovaram a forma”, minuciou Hasnain, “mas podem sempre voltar à forma clássica, pois receberam uma formação muito profunda … Fareed é brilhantemente experimental dentro de sua tradição. Dos qawwals vivos, para mim, é o melhor”.

‘Ouvintes dignos de meu treinamento’

Um vídeo de 2016 mostra Ayaz e Muhammad com outros dez cantores, a geração mais nova da família, interpretando uma poesia de Mirza Ghalib, autor do século XIX. Um cantor toca a tablah e Ayaz e Muhammad fazem soar os seus harmônicos. “Não me enterres na tua rua depois de me teres aniquilado”, canta Ayaz em urdu.

Os outros qawwals repetem o verso em um coro quase ensurdecedor, construindo a antecipação para a segunda linha, que suscita uma apreciação audível de seu público: “Por que deveria a minha campa servir como marco para outros encontrarem tua casa?”

Os cantores interagem constantemente com o público. A certa altura, Ayaz recita espontaneamente um verso de Shakeel Ahmad Ziya, poeta urdu do século XX. “Ou teu nome deveria estar na boca de todos”, canta ele com um sorriso, “ou ninguém deveria voltar a conversar comigo”.

O público vai à loucura.

Outro vídeo de 2016 que mostra uma interpretação de uma ode ao Profeta Mohammed, com 2.6 milhões de visualizações. A certa altura, o coro faz uma pausa. Ayaz levanta a mão direita. Começa a cantar, com os olhos brilhando de lágrimas. Subitamente, baixa a mão.

“O meu pai e meus anciãos treinaram-me de tal maneira”, diz ele com tristeza em urdu, “que, nos dias de hoje, fico preocupado. Treinaram-me com tanta integridade e esforço que acho difícil encontrar ouvintes dignos do meu treinamento”.

Levanta a mão novamente e canta em persa: “Ó personificação da beleza do Deus Imortal”. Uma nova pausa: “Os versos que estou a cantar, já ninguém os canta, quanto mais os compreende”.

Ayaz repete o verso mais devagar, saboreando cada sílaba.

“Na Índia pós-independência”, explicou Hasnain, “o Estado e a classe capitalista, para além da indústria cinematográfica em Mumbai, intervieram como um recurso econômico e fonte de patrocínio aos músicos. Deste modo, deu-se um sentimento de continuidade. No Paquistão, no entanto, devido à volatilidade de seus primeiros anos, houve uma descontinuidade tremenda. Não havia uma classe principesca ou capitalista para conferir patrocínio e músicos que migraram tiveram de tentar sobreviver por seus próprios meios”.

O khayal estava associado aos refugiados do norte da Índia e tinha um apelo popular um tanto restrito. Outro gênero, no entanto, floresceu em seu lugar: os ghazals — letras de amor em urdu. Os grandes cantores de ghazal das décadas de 1960 e 1970 — Farida Khanum, Mehdi Hassan, Ghulam Ali e outros — ascenderam à fama quando a televisão os levou ao público de massa.

Hassan, em particular, era “por temperamento, um músico clássico”, de acordo com o crítico musical Amit Chaudhuri, que “trazia algo da profundidade e amplitude tonal do khayal para o ghazal”.

Islã Árabe e Indo-Islã

A ditadura militar do general paquistanês Zia-ul-Haq, com o seu cariz religioso, mudou tudo para os artistas na década de 1980. Zia proibiu a música clássica nas rádio e exortou os cidadãos a emularem uma “cultura islâmica autêntica” e “deixarem de lado as influências hindus”.

“A música ghazal sobreviveu”, refletiu Hasnain, “mas foi muito suprimida, especialmente nos meios de comunicação”. O qawwali, porém, escapou à repressão. “Zia tinha um conceito de Islã muito austero. Mas não podia atacar o qawwali frontalmente, porque estava tão ligado aos dargahs [santuários sufis onde o qawwali era tradicionalmente executado], que eram extremamente poderosos”.

Ironicamente, foi durante o final do mandato de Zia que a “Idade de Ouro” do pop, rock e outras formas de música de influência ocidental prosperou no Paquistão.

O qawwali recebeu novo fôlego na década de 1970 através do extraordinário sucesso comercial dos irmãos Sabri, e então pela meteórica ascensão do qawwal mais famoso do mundo, Nusrat Fateh Ali Khan. Khan, falecido em 1997 com somente 48 anos, tornou-se uma sensação global ao cantar em Bollywood, na Índia, e colaborar com músicos ocidentais, incluindo Massive Attack.

Khan deu nova forma ao qawwali a um público moderno e internacional e pôs a música paquistanesa no mapa. “Não havia limites para o que poderia fazer”, sugeriu Hasnain. “O qawwali define seus próprios limites. Temos agora, por exemplo, o Coke Studio, que o modernizou e o transformou numa música de fusão absolutamente brilhante.”.

No entanto, embora nunca tenha sofrido ataques institucionais, o qawwali segue controverso. Em 2016, o renomado qawwal Amjad Sabri, filho de Ghulam Farid Sabri —um dos irmãos Sabri —, foi morto a tiro pelo ramo paquistanês do Talibã, que o acusou de blasfêmia.

Em fevereiro de 2017, um atentado suicida ao santuário do reverenciado Lal Shahbaz Qalandar, na província meridional de Sindh, matou ao menos 75 pessoas. O santo é o tema de um dos qawwalis mais populares do mundo, Dam Mast Qalandar.

Para além dos militantes, contudo, estão incontáveis estudiosos islâmicos que também se opõem ao canto de qawwali e ghazal.

Nusrat Fateh Ali Khan lamentou certa vez que os paquistaneses “se viam moralmente confusos sobre a música, aqueles que querem aprender ou que aprenderam estão sempre confusos, sentem culpa. Mas, para dizer a verdade, a música clássica … não é contra o Islã. Não é haram [pecado]. Depois de ouvi-la, um homem não se desvia.”

Um problema relacionado, argumentou Hasnain, é que muitas pessoas no Paquistão acreditam que a “identidade islâmica é a identidade árabe” e, portanto, rejeitam tradições musicais do subcontinente em busca de um Islã mais puro: “Se lhes disser que somos uma cultura indo-islâmica no Paquistão, receberá insultos”.

“Mas o que é então?”, acrescentou. “Não é árabe. Pessoas ignorantes falam da glória passada do Islã. Bem, quando olhamos a essa glória, era rica e multifacetada, embasada em tradições culturais de toda a parte. Uma glória que não se enclausurou em bobagens rígidas e mesquinharias”.

Nem tudo está perdido. Grandes músicos que, de outra forma, teriam vivido e atuado no anonimato, tornaram-se famosos graças a seu The Dream Journey.

“Meu irmão e eu costumávamos andar por aí implorando aos produtores musicais que nos dessem uma oportunidade”, disse Tuqeer Ali Khan, um dos cantores clássicos mais talentosos do Paquistão, em 2023. “Foi só quando fomos apresentados no canal de YouTube que as nossas carreiras começaram a florescer”.

Alguns veteranos ganharam fama no canal ainda em vida. O ustad Ameer Ali Khan foi um deles. Pouquíssimos o conheciam, mesmo no Paquistão, antes de The Dream Journey. Seu canto suave e comovente e sua performance magistral de sofisticada poesia urdu, no entanto, receberam milhões de visualizações, antes de falecer em junho de 2020.

Outro foi ustad Mubarak Ali Khan, cantor clássico que morreu em 2021, agora reconhecido como um dos grandes.

Maulvi Haider Hassan Vehranwale, outro favorito do público, morreu em 2019. “Sua família era uma potência”, recordou Hasnain. “Sentávamo-nos com eles numa sala pequena e o poder da música era tanto que me arrebatava as entranhas. Era avassalador, aquele poder e energia. E havia uma grande dose de espiritualidade em Haider Hassan em particular. Ele era um maulvi [erudito religioso]”.

“O que me surpreendeu”, prosseguiu, “é que a longevidade desses cantores não é muito grande. Eles se exaurem, ficam estressados”.

Mas a The Dream Journey levou a música deles ao mundo antes que morressem.

Uma das características mais singulares do canal é a qualidade das traduções ao inglês, precisas e elegantes. São produzidas por Musab bin Noor, um dos membros do grupo. “Ele transmite o sentido da poesia, a nuance”, ressaltou Hasnain. “É uma tradução muito refinada”.

Todo o projeto, brincou Hasnain, surgiu do nada. “Todo mundo acabou contribuindo da maneira que pôde”.

Em último caso, The Dream Journey descobriu e documentou um mundo de música e poesia magnificamente rico, preservando-o para o registo histórico e para um público global. Muitos dos seus vídeos servem como testemunhos dos extremos do esforço e do gênio musical, ao salvar grandes feitos da arte do esquecimento.

Os amigos, que integram o grupo, esperam viajar novamente ao Paquistão ainda este ano, para filmar mais músicos.

“É realmente um projeto abençoado”, concluiu Hasnain com um sorriso.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 19 de setembro de 2025

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