clear

Criando novas perspectivas desde 2019

Da paz fria às tensões abertas: relações Egito-Israel testadas

22 de setembro de 2025, às 05h59

O presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, discursa durante a Cúpula Extraordinária da Organização para a Cooperação Islâmica e da Liga Árabe, em 15 de setembro de 2025, em Doha, Catar. [Erçin Ertürk/ Agência Anadolu]

A recente descrição de Israel como “inimigo” pelo presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, na cúpula de Doha, marcou uma clara ruptura nas relações entre os dois países, que mantinham um relacionamento viável há quase meio século. As tensões têm aumentado, principalmente desde a guerra de Gaza, que começou há cerca de dois anos. Embora a paz tenha sido sempre uma “paz fria” ao longo de seus 46 anos, Israel permaneceu consistentemente a principal ameaça ao Egito, e o público egípcio nunca aceitou verdadeiramente a normalização com Israel. No entanto, os laços comerciais e de segurança entre os dois Estados cresceram de forma constante sob os acordos e a pressão americana na região. A questão premente hoje é por quanto tempo essa relação poderá permanecer estável, à luz dos antigos canais de cooperação e coordenação, em meio a tensões cada vez maiores entre os dois lados.

Desde que o Egito assinou o acordo de paz de Camp David com Israel em 1979, os dois países mantêm uma relação estável, ainda que discreta, moldada por um profundo sentimento de hostilidade que perdurava na mente dos egípcios. Os Estados Unidos desempenharam um papel decisivo no fomento dessa relação, aprovando a ajuda americana ao Egito em 1980, o segundo maior pacote depois do de Israel, com a condição de que os laços com Israel permanecessem intactos. Washington também trabalhou com o Cairo na cooperação militar, construindo um sistema defensivo baseado em armas, sistemas e treinamento ocidentais, mantendo o princípio norteador de garantir a vantagem militar de Israel.

No âmbito da segurança, Camp David e a estrutura que estabeleceu para a região do Sinai tornaram-se centrais na definição do escopo da cooperação bilateral. Embora a colaboração tenha aumentado no início da década de 2010 para enfrentar o terrorismo no Sinai, os laços militares e de segurança permaneceram limitados, sem exercícios conjuntos, sem parcerias abertas e sem integração militar profunda.

LEIA: Ataque a Doha mostra que não há paz em ‘reconhecer’ Israel

Em 2004, os Estados Unidos estabeleceram o acordo de Zonas Industriais Qualificadas (ZII) com o Egito e Israel. O acordo permitiu que o Egito exportasse produtos para os EUA sem tarifas, desde que esses produtos contivessem um componente israelense. Esse acordo impulsionou as exportações egípcias para o mercado americano e expandiu a cooperação industrial entre Egito e Israel, principalmente em têxteis, produtos químicos e plásticos sob essa estrutura.

A expansão da cooperação energética abriu uma janela crítica para os interesses mútuos entre Egito e Israel. Começou em 2008 com a construção do gasoduto submarino Arish-Ashkelon, a espinha dorsal da transferência de gás entre os dois países. Inicialmente, o fluxo se deslocava do Egito para Israel. Mas em 2020, após a descoberta dos campos de gás israelenses de Tamar e Leviathan, a direção foi invertida.

Hoje, o Egito enfrenta um grave déficit na produção doméstica de gás e custos crescentes de importação de gás liquefeito, especialmente após a guerra na Ucrânia. O gás israelense fornecido pelo gasoduto tornou-se vital, não apenas atendendo à demanda local do Egito, mas também permitindo que o Cairo exporte gás para a Europa. Isso ressalta a importância do projeto do gasoduto terrestre de Nitzana, recentemente anunciado, que visa expandir as exportações de gás e fortalecer a segurança energética.

Nesse contexto, a recente ameaça do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de bloquear um acordo de gás de US$ 35 bilhões com o Egito, citando supostas violações militares egípcias no Sinai, ganha peso adicional. A medida parece fazer parte da estratégia deliberada de Israel de gerar tensão artificial para pressionar o Cairo.

A pressão de Israel sobre o Egito aumentou após a eclosão da guerra de Gaza em outubro de 2023, quando autoridades israelenses sugeriram abertamente a ideia de deslocar os moradores de Gaza para o Sinai, uma ideia que o Egito rejeitou firmemente como uma ameaça direta à sua segurança nacional. As tensões se agravaram no ano passado, depois que Israel assumiu o controle do Corredor Filadélfia, uma medida amplamente vista como uma violação dos acordos de segurança que regem a fronteira. Observadores notaram um claro declínio no nível de coordenação de segurança entre os dois países.

A tensão só aumentou. Após o ataque de Israel ao Catar, novas ameaças surgiram, sugerindo que ações semelhantes poderiam ser repetidas, não apenas contra o Catar, mas contra qualquer país que hospede líderes do Hamas.

O alerta, implicitamente direcionado ao Egito e à Turquia, ressaltou a possibilidade de que estes sejam os próximos na linha de fogo de Israel.

Embora think tanks americanos e israelenses tenham reconhecido as crescentes tensões nas relações entre Egito e Israel nos últimos dois anos e aconselhado Israel a preservar os laços com o Cairo, dado seu efeito estabilizador na região, particularmente favorável a Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu parece ter outras ambições.

Netanyahu não escondeu sua estratégia em relação ao Egito. Sua visão de um “novo Oriente Médio” coloca Israel, e não o Egito, como o centro que conecta o Oriente e o Ocidente. Sua fala sobre um “Grande Israel” aponta para planos de longo prazo em território egípcio, enquanto sua persistência em violar compromissos de fronteira em Rafah e em avançar com planos para deslocar moradores de Gaza são indicadores alarmantes e concretos dessas intenções.

Diante do apoio irrestrito dos Estados Unidos a Israel, da falta de expectativa do Egito de que Washington o apoiaria caso as tensões aumentassem, e do agravamento da crise econômica egípcia, particularmente no setor energético, onde o Egito importa um terço de suas necessidades energéticas, com o gás custando quase a metade se entregue por gasodutos de Israel em comparação com a importação de gás liquefeito, Israel está pressionando o Egito a levar adiante seus planos.

As tensões e os acontecimentos entre os dois países estão aumentando acentuadamente. O Egito intensificou sua retórica contra Israel, declarando que qualquer ataque israelense ao seu território seria tratado como uma declaração de guerra. Oficialmente, o Cairo agora descreve as ações de Israel em Gaza como limpeza étnica e crimes contra a humanidade, e se refere a Israel como “o inimigo”. A questão é para onde as coisas estão caminhando, especialmente nestes momentos tensos, enquanto Israel continua seu plano de forçar os moradores de Gaza, sob fogo, assassinato e destruição, a se deslocarem para o sul, em direção à fronteira entre Egito e Palestina.

LEIA: O ataque de Doha: Expondo o colapso da ordem internacional

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.