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Genocídio em Gaza, o canal Ben-Gurion e a política de reconstrução – apagamento intencional

19 de setembro de 2025, às 03h34

Fumaça sobe de Gaza após os ataques do exército israelense, vista da área de fronteira com Israel em 14 de setembro de 2025. (Mostafa Alkharouf/ Agência Anadolu)

“Cada plano, cada esquema, cada iniciativa apresentada por Israel significou, na prática, uma maior desapropriação significou, na prática, uma maior desapropriação do povo palestino.”

A violência em Gaza não é simplesmente um massacre episódico; é uma campanha planejada de apagamento — de vidas, meios de subsistência, memória e geografia. A Comissão Independente de Inquérito da ONU concluiu em junho de 2024 que o padrão de assassinatos, a negação de serviços essenciais à vida e a retórica de algumas autoridades israelenses beiram o genocídio. Para entender o que está sendo perdido, precisamos acompanhar não apenas as bombas, mas também os canais: como a água, a terra e o mar estão sendo transformados em armas e como grandes fantasias de infraestrutura — sobretudo a ideia de um canal Ben-Gurion — estão sendo implantadas para normalizar a desapropriação.

Apagamento pela água e infraestrutura básica

Em toda a Faixa de Gaza, sistemas de água, estações de tratamento de esgoto e instalações de dessalinização foram repetidamente destruídos ou inoperantes. A Human Rights Watch documentou como as ações de Israel deixaram quase todos os moradores sem água potável, chamando-a de tática deliberada com consequências letais. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) confirmou que crianças fazem filas por horas para obter água salobra, enquanto o esgoto inunda as ruas e doenças se espalham em acampamentos superlotados. O que parece um dano colateral é, na verdade, uma estratégia: sem água limpa, saneamento, escolas e hospitais, uma sociedade não consegue se reproduzir — e a memória se torna mais difícil de ancorar.

O canal Ben-Gurion: um canal de desapropriação

O canal Ben-Gurion não é uma mera curiosidade técnica. Imaginado pela primeira vez na década de 1960 como uma alternativa israelense ao Suez, o projeto foi reativado nos últimos anos, com planejadores e promotores promovendo soluções “visionárias” para o comércio regional. As propostas sugerem ligar o Mar Vermelho, perto de Eilat, ao Mediterrâneo, criando um novo corredor marítimo que contorne o Suez e corte o Negev e o sul do Levante.

À primeira vista, o canal promete empregos, portos e “revitalização”. Na prática, ele expõe como a reconstrução está sendo transformada em arma. Construir um canal dessa escala exigiria vasta aquisição de terras, demolição e perturbação ambiental. Se for traçado ao longo ou através do litoral de Gaza — como algumas variantes sugerem —, torna-se um instrumento explícito de reengenharia territorial: criando acesso marítimo, desapropriando comunidades e incorporando um corredor securitizado sob controle israelense ou estrangeiro.

Quem se beneficia — e quem paga?

O projeto Ben-Gurion é atraente para investidores: uma rota comercial alternativa que poderia desviar o tráfego do Suez, remodelar a logística regional e abrir contratos lucrativos. Analistas alertam que tal canal enfraqueceria a influência egípcia sobre o transporte marítimo global e daria a Israel e seus aliados uma nova vantagem estratégica. Mas, para os palestinos, corre o risco de exclusão permanente de sua costa e recursos.

O custo ecológico também seria imenso: cavar um megacanal através de paisagens áridas e aquíferos costeiros corre o risco de salinização das águas subterrâneas, destruição de ecossistemas frágeis e perdas agrícolas irreversíveis. Estes não são simplesmente efeitos colaterais ambientais; são uma forma de apagamento em si — obliterando meios de subsistência e conhecimento baseados em localidades.

Reconstrução como cobertura para securitização

A retórica da reconstrução — “nós reconstruiremos” — pode ser uma faca de dois gumes. Planos diretores emitidos em nome da revitalização frequentemente servem como cobertura política para apropriações de terras e integração econômica em termos definidos por potências externas. As avaliações de danos do Banco Mundial em Gaza reconhecem a necessidade de restauração do patrimônio e da infraestrutura, mas também revelam como doadores externos ditam estruturas sem a soberania palestina. Um projeto de canal exigiria infraestrutura de segurança permanente — portos, postos de controle, patrulhas e talvez até bases navais. Quem controla isso? Essa resposta determina não apenas o comércio, mas a própria geografia política da região. A reconstrução se torna mais uma camada de desapropriação.

Apagamento cultural e roubo da memória

Enquanto os planejadores mapeiam os canais, a UNESCO e especialistas locais contabilizam mesquitas, cemitérios, bibliotecas e sítios arqueológicos destruídos. A UNESCO constatou a destruição generalizada do patrimônio cultural de Gaza, classificando as perdas como “irreparáveis”. Cada ataque a uma escola, mesquita ou cemitério não é apenas destruição física, mas também um ataque à continuidade e à memória.

O duplo padrão da Europa e o apoio dos EUA

Aqueles que aplaudem a reconstrução à distância não são neutros. A UE frequentemente equilibra a retórica de preocupação com a continuidade dos laços econômicos e militares. Um relatório de 2024 de ONGs europeias mostrou que vários Estados da UE autorizaram a venda de armas a Israel, mesmo em meio ao genocídio de Gaza. Enquanto isso, os Estados Unidos continuam sendo o principal motor da capacidade israelense, fornecendo mais de US$ 158 bilhões em ajuda militar acumulada desde 1948. Essa combinação de duplicidade europeia e cumplicidade americana garante que projetos como o canal Ben-Gurion sejam isentos de responsabilização.

A política de permanência e os limites da força

As ocupações sobrevivem apenas enquanto podem reproduzir legitimidade e viabilidade. O canal Ben-Gurion não é apenas infraestrutura; Trata-se de um projeto político para reestruturar a região. Mas a história alerta que projetos enraizados no apagamento carregam as sementes do seu próprio colapso. O “desenvolvimento” militarizado gera resistência e instabilidade a longo prazo.

Conclusão: nomeie o projeto, exponha o desígnio

Chamar este momento de genocídio não é um excesso retórico, mas sim clareza política. O canal Ben-Gurion não é um plano de engenharia neutro; é um instrumento de desapropriação. Nomeá-lo e criticá-lo é urgente: ele une a negação de água, a destruição cultural e a “reconstrução” securitizada. O mundo deve rejeitar os esquemas de reconstrução que cimentam o apagamento e, em vez disso, insistir na soberania palestina, na proteção do patrimônio e na responsabilização. Qualquer coisa menos do que isso é cumplicidade com o genocídio.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.