Em uma era em que nossos celulares brilham com o fluxo interminável de notícias de última hora, vídeos curtos e feeds selecionados, o próprio genocídio foi transformado em conteúdo consumível. Vivemos não apenas em uma era de guerras, mas no que poderia ser chamado de era Netflix da guerra, onde a destruição transmitida ao vivo de Gaza, Sudão e Congo não é apenas testemunhada, mas perfeitamente integrada a uma economia global de imagens. Hospitais bombardeados, crianças famintas, bairros arrasados, a prova visual da atrocidade circula instantaneamente, mas em vez de penetrar na consciência do mundo, é nivelada na “cultura do scroll”, onde o feed infinito garante que tudo, por mais catastrófico que seja, compete pelos mesmos segundos fugazes de atenção que as fofocas de celebridades, os melhores momentos do futebol ou o lançamento de um novo iPhone. A violência se torna entretenimento, a atrocidade se torna tendência e o genocídio se torna espetáculo.
O pensador palestino Ghassan Hage observou certa vez que, na ordem global, algumas vidas são vividas no que ele chamou de “espera existencial”, suspensas entre o reconhecimento e o apagamento, visíveis o suficiente para serem conhecidas, mas não valorizadas o suficiente para provocar transformação. Esse enquadramento ressoa poderosamente com a condição palestina, mas também se estende àqueles em Darfur, Cartum ou Goma. Suas mortes não são ocultadas, estão em toda parte, mas são apresentadas em tal abundância e repetição que correm o risco de se dissolverem em ruído de fundo. A câmera do celular, a transmissão ao vivo, o clipe viral: cada um deveria servir como evidência de horror, mas, em vez disso, tornam-se pedaços de conteúdo, assistidos, curtidos e passados na tela, quase como se a própria guerra tivesse sido transformada em séries maratonáveis.
Chamar isso de era Netflix da guerra não é trivializar seus desafios, mas reconhecer a profunda mutação de como a violência é mediada. Antigamente, a fotografia de atrocidades, como a menina nua fugindo do napalm no Vietnã, podia incendiar protestos em todos os continentes. Hoje, existem centenas dessas imagens a cada hora. Elas não mobilizam o público; elas o anestesiam. Susan Sontag, escrevendo sobre a dor alheia, alertou que as fotografias podem despertar compaixão, mas também produzir fadiga. As plataformas digitais do nosso tempo aceleram essa fadiga, transformando-a em uma condição permanente: o que começa como indignação se transforma em dormência, e a dormência em um estado normal de coisas.
Essa nova condição de testemunhar um genocídio levanta um profundo paradoxo moral. A própria visibilidade da violência, a acessibilidade instantânea de imagens dos escombros de Gaza ou dos campos de deslocados de Darfur, deveria provocar ação. Mas, em vez disso, a maquinaria das plataformas globais transforma visibilidade em consumo e consumo em passividade. O que antes era uma exigência para “testemunhar” foi recodificado como um hábito de “assistir”. A audiência global assiste, mas não responde. O peso moral de testemunhar foi esvaziado pela compulsão viciante de rolar a tela.
É preciso perguntar: por que o genocídio transmitido ao vivo, visível para milhões em tempo real, não conseguiu gerar a indignação coletiva que gerações anteriores de violência política às vezes geraram? Parte da resposta está na pura saturação da violência na era digital. Cada dia apresenta múltiplas crises: o cerco de Gaza, o colapso civil do Sudão, as guerras esquecidas do Congo, além da Ucrânia, Mianmar e Iêmen. Cada uma exige atenção, e ainda assim a atenção é finita. As plataformas as forçam a competir, produzindo uma hierarquia de sofrimento. Algumas atrocidades se tornam virais, outras permanecem invisíveis. E mesmo aqueles que se tornam tendências são rapidamente substituídos pela próxima crise, o próximo clipe viral.
Mas o problema é mais profundo do que a fadiga. A era da Netflix, marcada pela guerra, produz não apenas indiferença, mas também uma perigosa sensação de espectador, onde a atrocidade é encarada como “conteúdo” e não como um chamado à consciência. Os espectadores não são convidados a intervir, apenas a assistir, reagir, talvez repassar. A violência se torna algo com o qual se “engajar” online, não algo com que se resistir politicamente. Essa mudança é sutil, mas devastadora. Ela transforma cidadãos em audiências, atores morais em consumidores. Como Achille Mbembe argumentou em Necropolítica, o poder moderno diz respeito à gestão da morte, quem pode viver, quem pode morrer e como suas mortes são encenadas. Em nosso momento, a encenação da morte não é tarefa apenas dos Estados, mas também das plataformas. O direito soberano de matar está agora entrelaçada com a lógica algorítmica do que será visto, do que será amplificado, do que será tendência.
Considere Gaza, onde corpos de crianças retirados dos escombros circulam em minutos no Instagram ou no TikTok. Essas imagens são evidências inegáveis da brutalidade israelense, mas circulam sem alterar as estruturas de impunidade que sustentam a violência. Israel conta com isso. Sabe que, na era do conteúdo infinito, visibilidade não é sinônimo de responsabilização. A própria transmissão ao vivo da guerra funciona como um escudo: enquanto as atrocidades forem vistas como parte do “fluxo” da mídia global, é improvável que provoquem indignação sustentada que possa mudar o poder. O público fica desorientado pelo excesso de informação, incapaz de distinguir um massacre do outro.
E, no entanto, chamar isso de mera indiferença seria fácil demais. Há também cumplicidade. Assistir ao genocídio como conteúdo é participar, ainda que involuntariamente, do espetáculo da dominação. O assunto em movimento não está fora da estrutura de poder, mas sim entrelaçado a ela: cada clique, cada visualização, cada repostagem torna-se parte de uma economia de dados que prospera com a indignação, sem nunca permitir que ela se transforme em ação. É isso que torna nossa condição tão insidiosa. Não somos testemunhas passivas; somos consumidores ativos de atrocidades. O sofrimento alheio sustenta os circuitos de atenção dos quais as plataformas lucram.
Há quem argumente que a visibilidade, mesmo como conteúdo, ainda importa, que sem essas imagens transmitidas ao vivo, as atrocidades seriam completamente negadas. Eles apontam que palestinos sitiados, ou civis sudaneses sob fogo, frequentemente insistem em documentar sua própria devastação, não porque acreditem que isso os salvará, mas porque permanecer invisível é ser completamente apagado. Este é um contraponto poderoso e não pode ser descartado. De fato, o ato de registrar é em si uma forma de resistência, uma recusa a desaparecer silenciosamente. O poeta palestino Mahmoud Darwish escreveu certa vez que narrar a própria morte é desafiar a aniquilação. Nesse sentido, os vídeos de Gaza são ao mesmo tempo testemunho e rebelião.
Mas a questão permanece: o testemunho que circula como conteúdo mantém sua força ou corre o risco de se dissolver no oceano de imagens onde a atrocidade compete com a distração? A resposta pode depender de o público se contentar em assistir ou se conseguir transformar assistir em ação. Aqui reside a tarefa inacabada: resgatar as imagens de genocídio da lógica do entretenimento e reinvesti-las com urgência política.
A questão mais profunda não é apenas o que é visto, mas como é enquadrado. A era da guerra da Netflix trata cada clipe como igual, achatado na mesma estética do feed. É esse achatamento que rouba à atrocidade sua gravidade singular. Para desfazer isso, devemos resistir à cultura da rolagem em si. Devemos aprender novamente a conviver com uma imagem, a deixá-la penetrar em vez de deslizar, a permitir que o horror nos mova para a solidariedade em vez da distração. Este não é um chamado nostálgico para retornar a um passado mítico onde a consciência estava intacta, mas um reconhecimento de que as infraestruturas digitais do nosso tempo são projetadas precisamente para fragmentar, dispersar e neutralizar a energia moral. Resistir ao genocídio nesta era requer resistir às plataformas que o transformam em espetáculo.
Ghassan Hage nos lembra que a verdadeira luta não é simplesmente por terra ou soberania, mas pela “capacidade de imaginar o contrário”. Se o genocídio como espetáculo nos ensina a imaginar a violência como inevitável e a resistência como fútil, então a contratarefa é insistir em outras imaginações: de solidariedade que não pode ser ignorada, de ação coletiva que não desaparece com a próxima tendência viral, de consciência moral que não pode ser absorvida pelo conteúdo. Isso requer não apenas a vontade individual, mas a construção de novas infraestruturas de atenção, onde a atrocidade não seja assistida, mas confrontada, onde o testemunho não desapareça nos feeds, mas se torne a base da mobilização.
A era da guerra da Netflix é, portanto, um desafio à nossa imaginação moral. Revela que o maior perigo hoje não são apenas as bombas ou as balas, mas a anestesia silenciosa de assistir. O genocídio se desenrola diante de nossos olhos, mas, a menos que resistamos à transformação do horror em entretenimento, corremos o risco de nos tornarmos espectadores do nosso próprio colapso moral. A escolha é clara: ou ignoramos a situação ou permitimos que as imagens nos firam e nos levem à responsabilidade. Ser humano nesta era não é mais simplesmente testemunhar. É recusar-se a deixar que o testemunho se reduza à observação.
Edward Said (de “Permission to Narrate”):
“Os fatos não falam por si, mas exigem uma narrativa socialmente aceitável para absorvê-los, sustentá-los e divulgá-los. Negar o direito de narrar é aniquilar um povo duas vezes — primeiro na realidade e depois na memória.”
Referências:
Hage, G. (2009). Waiting. Melbourne University Publishing.
Mbembe, A. (2019). Necropolitics (S. Corcoran, Trans.). Duke University Press. (Original work published 2003)
Said, E. W. (1984). Permission to narrate. Journal of Palestine Studies, 13(3), 27–48. https://doi.org/10.2307/2536688
Sontag, S. (2003). Regarding the pain of others. Farrar, Straus and Giroux.
Darwish, M. (2007). The butterfly’s burden (F. Joudah, Trans.). Copper Canyon Press.
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