O inesperado aconteceu. Israel bombardeou o Catar. Não sei se atacar Doha é realmente inesperado a esta altura. Ao menos, jamais esteve em cogitação, salvo, talvez, soterrado no subconsciente israelense. O Catar é um proeminente mediador entre Israel e Hamas, mesmo antes de eclodir o genocídio em Gaza, em outubro de 2023. Junto do Egito, exerce regionalmente um papel vital pelo fim da guerra e pela soltura dos prisioneiros de guerra israelenses restantes em Gaza. Agora, pela primeira vez, é bombardeado diretamente por Tel Aviv — um exercício inesperado, e sobretudo irracional, do uso excessivo da força pelo Estado da ocupação israelense.
Tentar ruminar sobre o incidente é árduo e vago. Israel executou um ataque militar a Doha, capital do Catar, cidade para onde a própria equipe de negociação israelense, bem como emissários americanos, voou diversas vezes na conjuntura atual.
O ataque ocorre em um momento em que o Catar trabalha pelo fim da crise, em um dos estágios mais sensíveis das negociações. O mais recente plano do presidente americano Donald Trump estava em sua fase final de deliberação para, quem sabe, encerrar a guerra e materializar uma última troca de prisioneiros.
Horas antes do ataque a Doha, outro, que ficou para trás no noticiário. Na costa tunisiana, a Flotilha Global Sumud se preparava para partir, em nova tentativa para romper o cerco a Gaza e levar assistência humanitária a seu povo assolado pela fome. Seus barcos foram então alvejados por um ataque a drone, atribuído a Israel, na tentativa de dissuadi-los de seguir com a missão.
Outro ponto digno de ponderação, na tentativa de encontrar lógica no ataque israelense a Doha é este: Israel meramente tentou eliminar os negociadores com quem se engaja, por vias indiretas — mediante Catar e Egito —, por um cessar-fogo e troca de prisioneiros? É, digamos, raríssimo — se não sem precedentes — que um lado envolvido em negociações diplomáticas pelo fim de um determinado conflito ataque negociadores, facilitadores ou mediadores do outro, como parte de sua estratégia supostamente diplomática.
Tudo que ouvimos de Israel até então sugere que a ação se deu com plena consciência e mesmo possível anuência do governo em Washington, o mesmo que esboçou a proposta sobre a mesa, sob deliberação do Hamas, via Catar. Tamanha imprudência ameaça agora levar a crise árabe-israelense a reinos jamais imaginados.
Repúdio protocolar e demonstrações de apoio logo vieram do Oriente Médio e do resto do mundo, incluindo do impotente secretariado-geral das Nações Unidas, em um momento em que a implementação de decisões e ações é urgente para estabelecer alguma ordem internacional. Enquanto isso, o povo de Gaza lida com um genocídio de quase dois anos, sem horizonte, e Israel expande sua agressão a Iêmen, Síria e Irã. Agora, o Catar se junta à longa lista de nações bombardeadas por Israel, em seu anseio por supremacia.
A esta altura, quando Israel bombardeia mediadores e negociadores, fica evidente que as inciativas para chegar a um cessar-fogo e troca de prisioneiros não são de fato desejadas pelo lado israelense. Nos deparamos com um cenário nítido, a começar por Gaza e além: Israel permanece como único agente divisivo na região, enquanto o mundo se mostra um espectador passivo, quando muito “preocupado”. Suas intervenções tomam atenção; no entanto, nada fazem para dar fim à guerra, à fome e ao genocídio.
Enquanto escrevo, uma nova massa de palestinos é deslocada outra vez, aos cantões sul do gueto de Gaza, sob condições cada vez mais desumanas. Ainda mais alarmante, é a possibilidade — posta pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ecoada por Trump — de remover à força a maioria, senão a totalidade, dos dois milhões de palestinos em Gaza, ao efetivamente destitui-los de suas terras.
O mesmo primeiro-ministro que ordenou irresponsavelmente bombardear o Catar — um dos mediadores do conflito, com papel geopolítico regional há anos, e sobretudo um dos principais aliados dos Estados Unidos no Golfo — está claramente disposto a repetir seus ataques no Egito e outros, em nome de uma agenda de deslocamento e limpeza étnica do povo palestino não somente de Gaza, como da Cisjordânia e Jerusalém.
Podemos argumentar que o ataque ao Catar reflete, por fim, uma urgência de que nações árabes e aliados assumam uma nova postura — firme e estratégica — neste momento tão crítico da conjuntura, antes que a situação piore ainda mais. É hora de mostrar unidade, visão clara de futuro, e assegurar que as linhas vermelhas, no que concerne a segurança e soberania de cada um dos Estados regionais e além, não sejam violadas — por ninguém, não somente pelo Estado de Israel.
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