As queixas contra o silêncio das corporações de mídia diante do número crescente de jornalistas sendo mortos em Gaza chegaram ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, através de sua Comissão de conselheiros ad hoc sobre o direito à comunicação e foram debatidas no pleno do colegiado na sessão de 5 de setembro. Como resultado, uma nota foi emitida pedindo às empresas um posicionamento mais enfático contra os ataques deliberados de Israel à imprensa, lembrando não apenas sua missão de informar, que tem sido violada em Gaza, quando sua obrigação de defesa dos profissionais e reação.
Em sua nota, o Conselho Nacional de Direitos Humanos informa ter sido provocado a se manifestar por representantes da sociedade ouvidos por sua Comissão de Comunicação, sobre as mortes de jornalistas em Gaza e a cobrar das corporações de mídia ações mais enfáticas contra o a matança de seus profissionais pelas forças israelenses e contra a continuidade do genocídio do povo palestino. E o colegiado acolheu as ponderações recebidas:
O assassinato de jornalistas em Gaza é a negação criminosa do direito palestino de expor sua realidade e mobilizar a comunidade internacional, a sociedade civil e governos como o do Brasil, para a tomada das medidas urgentes que venham interromper o massacre e devolver o direito do povo palestino à vida e ao controle de sua terra. Mais do que isso, normaliza o genocídio como política de Estado e ameaça, com isso, a todos os povos do mundo que devem ser protegidos pela Carta Mundial dos Direitos Humanos e a todos os Estados que vêm ameaçado o próprio Direito Internacional
A falta de posicionamento ativo da mídia, quando a parte fundamental de sua missão de informar é violada deliberadamente, só vem reforçar um alinhamento das coberturas ocidentais à abordagem adotada por Israel e seus aliados para justificar a matança desenfreada e o assalto à Gaza. Nessa linha editorial, ao noticiar as mortes que se acumulam a cada dia em Gaza, o deslocamento de uma população ferida e atordoada pela fome e a invasão de tanques para a tomada de terras alheias, a imprensa remete sempre a responsabilidade pelos fatos que noticia ao 7 de outubro de 2023 e renega a história de um genocídio que começou bem antes e impunemente – quando nem era televisionado. Hoje Israel trabalha para manter sua impunidade histórica, banindo equipes e emissoras de TV e, ao se ver incapaz de controlar a notícias que vazam de Gaza por correspondentes, simplesmente matando jornalistas.
“Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz” escreveu o jornalista da Al Jazeera, Anas Al-Sharif., antes de morrer, aos 28 anos. “Experimentei o sofrimento e a perda muitas vezes, mas nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou falsificação.”
Sua mensagem circulou mundialmente como um testamento e um pedido para que Gaza não seja esquecida. Sua morte não foi ignorada pela grande imprensa, embora não tenha merecido um posicionamento mundial – ou brasileiro – de suas corporações contra a matança de seus profissionais.
Al-Sharif era uma das fontes que resistiam para informar sobre o massacre em Gaza. Por isso mesmo, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) alertou, em julho último, que estava temendo por sua vida, “alvo de uma campanha de difamação militar israelense”.
No último 10 de agosto, o exército israelense matou seis jornalistas atacando a tenda em que se encontravam e afirmou abertamente que Al-Sharif era seu alvo.
Israel matou, de uma vez só, os jornalistas Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher, Mohammed Noufal e Moamen Aliwa – além de outras duas pessoas, incluindo o sobrinho de Al-Sharif.
No dia 14 de agosto, o portal +947Mag divulgou uma reportagem denunciando a existência de uma unidade encarregada de destruir a reputação de jornalistas. “O exército israelense opera uma unidade especial chamada ‘Célula de Legitimação’, encarregada de coletar informações de Gaza que possam fortalecer a imagem de Israel na mídia internacional, de acordo com três fontes de inteligência que falaram à revista +972 e à Local Call e confirmaram a existência da unidade”, publicou o portal. A célula também foi designada, conforme a reportagem, para “identificar jornalistas baseados em Gaza que poderiam ser retratados como agentes secretos do Hamas, em um esforço para conter a crescente indignação global com o assassinato de repórteres por Israel”
Al-Sharif sofreu acusações pelo exército israelense por quase um ano antes de matá-lo, e depois afirmou que ele era chefe de uma célula terrorista. A perseguição aumentou depois que ele gravou um vídeo em que chora ao cobrir a catástrofe da fome em Gaza, conforme registrou matéria da Revista Time e vários outros veículos. Ele foi acusado por Israel de propagar uma “falsa campanha do Hamas contra a fome” e chorar “lágrimas de crocodilo”, algo que revoltou o Comitê para a Proteção dos Jornalistas pelo que considerou “uma tentativa de fabricar consentimento para matar al-Sharif”, lembrando que Israel havia matado outros quatro jornalistas da Al Jazeera com acusações semelhantes
Um caso lembrado na reportagem da +972 foi a morte, em julho do ano passado, do jornalista Ismail Al-Ghoul, em um ataque aéreo israelense, junto com seu cinegrafista. “Um mês depois, o exército alegou que ele era um ‘agente da ala militar e terrorista da Nukhba’, citando um documento de 2021 supostamente recuperado de um ‘computador do Hamas’. No entanto, esse documento afirma que ele recebeu sua patente militar em 2007 — quando ele tinha apenas 10 anos.”
Na segunda-feira (25), soldados israelenses mataram mais cinco jornalistas de agências internacionais em um duplo bombardeio contra o Hospital Nasser, no sul de Gaza, com ao menos 20 vítimas fatais. Entre os mortos estão Mariam Abu Dagga, fotojornalista da Associated Press; Hussam al-Masri, fotógrafo da Reuters; Moaz Abu Taha, repórter freelance; e Mohamed Salama e Ahmed Abu Aziz, que colaboravam com o Middle East Eye, entre outras agências. O escândalo desse ataques mortais às principais agências que cobrem o Oriente Médio mereceria uma ação articulada das corporações de mídia junto aos tribunais internacionais, além do boicote às manipulações de Israel.
Um sexto jornalista, Hassan Douhan, foi baleado e morto por soldados israelenses em Khan Younis, segundo o portal Monitor do Oriente Médio. Douhan era um reconhecido repórter investigativo e editor-chefe da publicação local al-Hayat al-Jadidah, responsável por treinar diversos jornalistas emergentes em Gaza. O segundo bombardeio ao Hospital Nasser foi flagrado em tempo real, durante transmissão ao vivo da emissora jordaniana Al Ghad TV.
Jornalistas em todo o mundo expressaram indignação com a morte dos colegas. Em São Paulo, um ato foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas de S. Paulo e a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj). A Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) está convocando as entidades filiadas em todo mundo para uma manifestação. Mas é flagrante o conflito entre a linha editorial pró-Israel dos grandes veículos de mídia que enxergam terrorismo na resistência palestina e não admitem um terrorismo de Estado que alcança seus próprios profissionais.
Desde 7 de outubro de 2023, a pretexto de combate ao Hamas, já foram mortos 246 jornalistas e profissionais de mídia por Israel, de acordo com o Sindicato dos Jornalistas Palestinos. Não há número certo em meio a um genocídio que já eliminou mais de 63 mil vidas e deixou 160 mil feridos e 11 mil desaparecidos.
O conselho considerou que a indignação mundial, unica força capaz de conscientizar e mover governos para levantar-se contra o genocídio, não pode ser silenciada pela eliminação de fontes e testemunhos e pelo controle da narrativa da mídia por Israel. A manifestação das sociedades e suas instituições comprometidas com os Direitos Humanos é o que pode forçar a comunidade internacional a intervir. A mídia deve ser expressão das cobranças da sociedade por justiça e isso inclui o dever de agir urgentemente contra um genocídio que tenta se esconder a cada assassinato de um jornalista palestino.
