Um grupo criado para atuar como relações públicas de Israel e seu exército, conhecido como Célula de Legitimação, estaria usando três táticas para fabricar provas contra jornalistas e legitimar o assassinato de centenas de profissionais na Faixa de Gaza: manipulação de documento de filiação ao Hamas ou outra organização, fotografias com líderes e, por fim, declarações em seus históricos de redes sociais ou publicações em websites. Todo material é descontextualizado para fundamentar a narrativa israelense de perseguição e antisemitismo e desacreditar os jornalistas palestinos, contratados por agências internacionais de notícia para cobrir a guerra.
Após quase dois anos da ofensiva de Israel na Faixa de Gaza, pelo menos 220 jornalistas foram mortos cobrindo a guerra contra o povo palestino, segundo a Repórteres Sem-Fronteiras. Há fontes que contabilizam mais de 270. As dificuldades de obter informações in loco já seriam imensas, já que o governo israelense proíbe a entrada da imprensa internacional. Mas, informações obtidas pela +972 Magazine, dão conta de que um grupo ligado à inteligência israelense atua para limpar a imagem daquele país, quando as críticas sobre os métodos adotados na guerra se intensificam.
![Jornalista, alvo de Israel [Antonio Rodriguez/ Cortesia]](https://www.monitordooriente.com/wp-content/uploads/2025/09/WhatsApp-Image-2025-09-03-at-12.43.34-258x333.jpeg)
Jornalista, alvo de Israel [Antonio Rodriguez/ Cortesia]
Algo similar, inclusive, ao que ocorreu nesta semana, quando crescem cada vez mais as críticas à nova ocupação do território palestino, com inúmeros bombardeios, e o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, aparece ao lado de uma viúva que perdeu o marido e um filho durante o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, à Tel Aviv, após a exibição de um vídeo inédito que mostra o ataque à família, registrado pelas câmeras de segurança da casa. “Vamos destruir o Hamas, vamos trazer nossos reféns para casa, porque nos lembramos de 7 de outubro, e vocês também deveriam se lembrar”, afirma Netanyahu ao final da propaganda.
Uma das fontes ouvidas pela revista online contou que a produção de documentos para incriminar os profissionais da imprensa segue a mesma lógica. Foi relatado ao jornalista Yuval Abraham, situado em Jerusalém, de que todo o material montado pela Célula de Legitimação também era repassado aos estadunidenses, sendo considerado trabalho “vital” para a manutenção da guerra e para que países, como os Estados Unidos, não parem de fornecer armas.
Táticas
A primeira tática para relacionar a imagem da imprensa ao Hamas ou a Jihad Islâmica é produzir trechos de documentos de supostas filiações, que vincule ao menos um jornalista e, então, passar a divulgar massivamente essa informação. Em janeiro de 2024, quando o jornalista da Al Jazeera Hamza al-Dahdouh foi morto em Khan Younis, no sul de Gaza, um relatório dizia que ele pilotava um drone para vigiar tropas israelenses. Após dois meses, uma reportagem investigativa do Washington Post desmentiu a informação, conforme checado pela +972 Magazine.
Essa foi também uma das táticas usadas para incriminar o jornalista da Al Jazeera, Anas Al-Sharif, assassinado juntamente com outros quatro colegas, quando dormiam em uma tenda ao lado do hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza, no dia 10 de agosto passado. Israel divulgou três documentos contraditórios entre si. Um de 2023, ele é citado como “combatente suspenso” e “sem atribuição”, tendo sofrido ferimentos que o deixaram com problemas de audição, visão e dores de cabeça constantes. Outro registro, de 2019, descreve Al-Sharif como “líder de grupo”, e que sua filiação ao Hamas teria sido aos 17 anos, o que vai contra o estatuto do grupo, que exige idade mínima de 18 anos. Outro documento, sem data, sugere que Al-Sharif teria sido de uma divisão de combate de elite das brigadas Al-Qassam, o que seria estranho alguém com essas limitações físicas fazer parte ou que tivesse sido anteriormente membro e depois rebaixado.
A segunda tática usada é a de relacioná-los a partir de fotos tiradas com lideranças do Hamas. Para isso, é preciso dizer que o jornalismo em Gaza é visto por muitos como uma das poucas chances de ser bem-sucedido, por serem contratados por agências internacionais, o que torna o mercado muito competitivo. Uma forma de se destacar e comprovar seu acesso à personalidades políticas é fazer registros das mesmas e também posar junto. Boa parte dessas figuras conhecidas são do Hamas, que é uma importante organização política da região. Ou seja, não é algo raro um profissional em Gaza ter um registro fotográfico desse.
No caso de Al-Sharif, um vídeo dele que acabou viralizando, onde chora diante da morte de uma pessoa por fome, instigou a ira de integrantes do porta-voz do exército, Avichay Adraee, acusando-o de participar do que ele chamou de “falsa campanha de fome do Hamas”. Um mês antes de sua morte, Al-Sharif, como bom repórter, alertou sobre a guerra midiática feita por Netanyahu, a qual também estava sendo alvo e que temia por sua vida.
“Francamente, não me importa se Al-Sharif fazia parte do Hamas ou não. Não matamos jornalistas por serem republicanos ou democratas ou, na Grã-Bretanha, do Partido Trabalhista”, declarou Ian Williams, presidente da Associação de Imprensa Estrangeira, em entrevista à CNN nos Estados Unidos, lembrando que qualquer um que acompanhasse o trabalho do jornalista podia ver que se dedicava 24 horas à cobertura jornalística, o que não lhe restaria tempo para mais nada. Ele diz também não acreditar nas alegações do exército sobre o jornalista, pois não é possível checar as alegações uma vez que toda a imprensa internacional está proibida de entrar em Gaza.
Em diversos momentos Al-Sharif foi crítico ao Hamas, expondo opiniões fortemente contrárias, como em dezembro de 2024, quando apelou para que aceitassem o acordo de cessar-fogo, mesmo que precisasse entregar todos os reféns. Ele chegou a responsabilizar os negociadores do Hamas pelas milhares de mortes no que ele chamou de “nossa Nakba”. Em abril deste ano, republicou a postagem de um colega que chamava os foguetes do Hamas de “comportamento imprudente, nem moralmente nem nacionalmente sensato”.
A terceira tática usada para criar argumentos contra os profissionais palestinos é a captura de imagens e declarações fora de contexto, encontradas no histórico das redes sociais ou do seu trabalho. O que foi feito contra o poeta de Gaza Refaat Al-Areer, exterminado num ataque aéreo em novembro de 2023. O exército usou uma captura de tela de um tuíte em que ele brincava sobre a falsa alegação de que o Hamas queimou bebês em fornos em 7 de outubro.
Também usaram uma suposta mensagem no Telegram atribuída à Anas Al-Sharif em que ele chamava de heróis integrantes do grupo palestino que cometeram os atos de 7 de outubro. A mensagem, não encontrada no histórico de publicações do jornalista, pode ter existido e ter sido apagada logo após ele constatar o conteúdo da mesma. Isso porque houveram muitas atualizações de notícias naquela data, extraídas de outros grupos e sites de notícias, o que pode o ter induzido a publicação acidental.
Caso fosse autor dessa afirmação, isso justificaria seu assassinato? Inúmeras vezes cidadãos de diversas nacionalidades já comemoraram perdas e humilhações militares em guerras como, por exemplo, derrotas alemãs ou soviéticas. Mas quando palestinos demonstram as mesmas emoções humanas em relação às mortes de soldados israelenses, que os bombardeiam e os empobrecem há décadas, isso é tratado como apologia ao terrorismo.
Vantagens em eliminar jornalistas
O extermínio de diversos profissionais experientes na região semanas antes do maior ataque já planejado por Israel à cidade de Gaza, pode ter sido calculado para que os mesmos não revelassem novas provas de crimes de guerra praticados por Israel. O silenciamento também é uma maneira de intimidar seus colegas e desencorajar as vítimas da violência de denunciar abusos. Todas essas ações orquestradas tentam de alguma maneira censurar a imprensa.
Deborah Moreira, com informações da +972 Magazine
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.









