O secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, David Lammy, afirmou em novembro passado, durante sessão da Câmara dos Comuns, que não poderia verificar as alegações de pilhagem em Gaza pois não haveria jornalistas no território. Lammy se referia a repórteres estrangeiros, impedidos de entrar por Israel, mas seu tropeço foi revelador — e estamos a tempo de lhe dar a razão.
No ritmo em que Israel mata jornalistas palestinos em Gaza — ao menos 245 e contando, segundo uma fonte; mais de 273, conforme outra —, é possível que logo não restem profissionais de imprensa para registrar seu próprio genocídio em tempo real, para todo o mundo ver. É para isso que rezam alguns colegas israelenses.
Sua reação aos assassinatos da última segunda-feira (25) de Mohamed Salama, Ahmed Abu Aziz, Hussam al-Masri, Moaz Abu Taha e Mariam Abu Dagga tornou isso particularmente gritante. Ressentiram seu premiê, Benjamin Netanyahu, somente pelo que descreveram de “trágico acidente”, em algo que não foi “trágico” tampouco “acidente”, segundo suas próprias palavras.
O Canal 14, apoiador aberto da campanha em Gaza, ecoou fontes militares ao alegar que o ataque matou “terroristas disfarçados de jornalistas”, em uma “base terrorista” do movimento Hamas, na ala cirúrgica do complexo de saúde. “Conforme o atual pressuposto de segurança, qualquer lugar em que os terroristas operem — seja escola ou hospital — é alvo legítimo”, corroborou a emissora.
Soldados afirmaram à reportagem que o ataque foi “aprovado e coordenado junto do alto comando e que este sabia da operação antes de ser executada”. O jornal Maariv, igualmente, informou que a ação foi conduzida “após receber aval do comando”.
Zvi Yehezkeli, correspondente para assuntos árabes da rede israelense i24 News, exaltou os assassinatos em Khan Younis. “Eram absolutamente homens nukhba [sic]”, argumentou facciosamente, ao se referir a seus colegas como supostos combatentes do Hamas. “Se Israel decide eliminar jornalistas, antes tarde do que nunca”.
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‘Incontáveis mentiras’
Yehezkeli, colono ilegal radicado na Cisjordânia ocupada, ao menos é honesto.
É mais do que podemos dizer de duas agências internacionais — Reuters e Associated Press — que recorreram ao trabalho das vítimas enquanto convinha, pelas quais, ingenuamente assumimos, teriam algum senso de dever. Ambas não tardaram em repetir, sem verificação, uma habitual desculpa de Israel, para atacar instalações civis: de que as Brigadas Golani alvejavam uma câmera usada pelo Hamas.
Certamente, isso não explica o segundo ataque, quinze minutos depois do bombardeio inicial, que matou os jornalistas.
Ao reproduzirem a alegação — como se Israel tivesse o direito de equilibrar seus ataques à imprensa com sua própria versão dos fatos —, as redes supracitadas sequer mencionaram a possibilidade de que a câmera alegada poderia ser sua, em meio à transmissão ao vivo da crise em Gaza. É isso que sugere o vídeo que documentou o ataque, da sacada onde estavam os jornalistas.
“Estamos indignados que jornalistas independentes estão entre as vítimas desse ataque contra um hospital, área protegida sob a lei internacional”, insistiram Julia Pace e Alessandra Galloni, editoras-chefes da Associated Press e Reuters, respectivamente, em nota conjunta. Deveriam se perguntar, porém, por que suas agências repetiram as alegações israelenses de que as vítimas seriam alvos legítimos, sem sequer contestá-las desde um primeiro instante.
Alguns fotógrafos da Reuters disseram basta. Valerie Zink compartilhou nas redes seu crachá partido ao meio, em um adeus público ainda na segunda, ao destacar um massacre similar quinze dias antes: “Quando Israel assassinou Anas al-Sharif, junto de toda a equipe da Al Jazeera na Cidade de Gaza, em 10 de agosto, a Reuters decidiu publicar a alegação inteiramente infundada de que ele seria um agente do Hamas — uma das incontáveis mentiras que redes de imprensa como a Reuters se dignaram diligentemente a repetir”.
“A determinação da Reuters em perpetuar a propaganda israelense não poupou seus próprios repórteres do genocídio”, acrescentou a jornalista.
Arrotando verdades
Tudo isso leva à pergunta: o que seria uma “câmera do Hamas” ou “jornalista nukhba”?
Poderíamos pensar que se trata de uma câmera que monitora posições militares israelenses para conduzir eventuais ataques. Contudo, estaríamos errados. A definição é muito mais vaga, como sugere Yehezkeli e outros, incluindo Andrew Fox, ex-agente britânico que hoje desfila sob o título de “pesquisador” para a Sociedade Henry Jackson, organização neoconservadora.
“Imagine quanto dano esses jornalistas — vamos chamá-los de jornalistas nukhba [sic] — quanto dano eles causaram a Israel”, reconheceu Yehezkeli. Para Fox, logo após o assassinato de al-Sharif, “há um mito perigoso no conflito moderno: de que ‘combatente’ quer dizer um homem com um fuzil ou uma mulher de uniforme”. Fica subentendido que, mesmo que al-Sharif fosse meramente um repórter — Fox repete, sem provas, a difamação israelense de que ele seria um membro do Hamas — haveria justificativa para assassiná-lo.
Ambos não sabem, mas tanto Fox como Yehezkeli acabam por trabalhar contra os interesses israelenses em impedir que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu Partido Republicano, abandonem um barco furado. Fanáticos como são, não conseguem se segurar em arrotar verdades, sobretudo de que os jornalistas representam um perigo a Israel precisamente porque estão fazendo seu trabalho.
Israel não pode se dar ao luxo de se olhar de corpo inteiro no imenso espelho que esses jornalistas arduamente levantam, dia sim e dia também. Tampouco pode tolerar as imagens de crianças magérrimas disseminadas pelo mundo, em uma epidemia de fome meticulosamente planejada por suas lideranças políticas e militares.
Matando em silêncio
Os números são reveladores.
Uma pesquisa recente da Universidade de Quinnipiac confirmou que 60% dos eleitores americanos rejeitam o envio contínuo de armas a Israel, contra 32%. Para a rede Politico, é um recorde na oposição à aliança Washington–Tel Aviv desde 7 de outubro de 2023. Metade dos consultados, admitiram genocídio, incluindo 77% dos eleitores democratas, contra 64% de republicanos que ainda creem na negativa.
Entre aqueles que se opõem, hoje, aos envios militares, está até mesmo o ex-assessor de Segurança Nacional Jake Sullivan.
Israel não está apenas perdendo a guerra em Gaza, mas — sobretudo — a está perdendo nos Estados Unidos, onde realmente importa. É o mesmo terreno, a milhares de quilômetros de distância, dos campos do Vietnã e Camboja, onde os Estados Unidos perderam a batalha contra os vietcongues, meio século atrás.
Como outros regimes genocidas, Israel quer matar os palestinos em silêncio, em meio a um blecaute informacional, enquanto uma imprensa cúmplice vomita abundantes mentiras e discursos de ódio.
Durante o genocídio em Ruanda, em 1994, as principais ferramentas para que os hutus atacassem a minoria tutsi foram “rádio e facão”. Algo semelhante ocorre hoje em hebraico. Não por acaso, uma firme maioria dos israelenses insiste em crer que “não há inocentes” em Gaza.
A mídia também foi fundamental ao genocídio de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista, trabalhou sistematicamente para desumanizar as vítimas, justificar sua perseguição e conquistar apoio popular para o assassinato em massa. Campos de concentração coagiam prisioneiros a enviar cartões-postais a familiares para dizer que estavam bem. Concertos foram gravados no gueto de Theresienstadt, depois dos quais toda a equipe foi mandada a Auschwitz.
A propaganda de que os judeus seriam “reassentados a leste” foi crítica para que o regime nazista encobrisse, suas câmaras de gás e sua “solução final”. Não é diferente dos rumores da mídia israelense de negociações com o Sudão do Sul, como eventual destino à “evacuação” dos palestinos em Gaza, como se fosse normal.
Heróis da profissão
A linguagem normaliza o genocídio.
Israel só pode operar em Gaza se os jornalistas estiverem sob seu controle, como um punhado de correspondentes estrangeiros que consentiram em acompanhar os batalhões e tanques israelenses.
Mas os cinco jornalistas que morreram na última semana eram feitos de algo mais. Citemos exemplos.
Mariam Abu Dagga, repórter freelance a diversas agências, incluindo a Associated Press, ganhou proeminência com uma tragédia pessoal, após filmar a morte de um manifestante, baleado por forças israelenses, na cerca de Gaza durante a Grande Marcha do Retorno, em 2018. Ao ver as imagens, descobriu que o morto era seu irmão. Seu marido mora nos Emirados Árabes Unidos, junto de seu filho; todavia, escolheu ficar para seguir com seu trabalho.
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Moaz Abu Taha foi o repórter que ajudou o Haaretz a conduzir um “tour virtual” na ala pediátrica do Hospital Nasser. Na ocasião, reiterou o jornal israelense: “A câmera se move ao quarto seguinte. Deitado em um leito, debaixo de uma pintura grande de uma abelhinha, está Sham Qadeeh, em condições horríveis. Ela tem dois anos e pesa somente 4.4 quilos. Sham nasceu pouco antes de eclodir a guerra, com peso normal. Seu abdômen, agora, está inchado; suas pernas, retorcidas; seus ossos parecem querer deixar do corpo; seu crânio é visível sob a pele; seus olhos parecem vidrados e seus dentes caíram. Tem o semblante de uma pessoa idosa”.
Os jornalistas que morreram na segunda — e cada jornalista morto a serviço durante o genocídio — são heróis de sua profissão. O resto de nós, que tem o luxo de seguir trabalhando com vida, deveríamos lembrar disso em nossos esforços e baixar as cabeças em sua memória.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 28 de agosto de 2025
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