Todo processo de luta social e política se defronta com a questão feminina de forma irredutível, sobremaneira no contexto de lutas pela libertação nacional e pela descolonização. Soraya Misleh nos brinda com seu livro intitulado “Uma história das mulheres palestinas: dos salons aos primórdios da literatura de resistência”, com uma cartografia dos itinerários da luta da mulher palestina contra dois processos de colonialismo: o britânico, já extinto, e a sua extensão, o de Israel, que perdura até hoje. O livro se ocupa em destacar a literatura como forma de resistência entre os coletivos de mulheres palestinas no período específico entre a segunda metade do século XIX até os anos 1960.
A obra evidencia a existência de produção literária e engajamento na leitura e interpretação de acontecimentos por parte destes coletivos femininos de modo a afirmar o papel da mulher no debate público em meio a uma transição histórica marcada pelo fim do Império Otomano e uma crescente presença de forças ocidentais, nominalmente francesas e britânicas, na região, com claras pretensões de tutela política, manifestando-se no mandato britânico no caso da Palestina.
A crescente chegada de grupos sionistas europeus com o apoio do governo inglês ao longo de décadas estabeleceu o caráter colonizador dessa presença e coincidiu com o fortalecimento de movimentos nacionais como o pan-arabismo e novas formações políticas de repúblicas emergentes na Síria e Líbano em específico. Essa conjuntura histórica 24 fez com que se evoluísse um movimento de luta das mulheres palestinas articulado e em diálogo com realidades sociopolíticas de grandes transformações, englobando a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
É nesse cenário local, e ao mesmo tempo global, que Soraya Misleh identifica existir “uma lacuna na historiografia” na pesquisa e estudos, onde a mulher palestina é invisibilizada ou marginalizada. A partir disso, ela se debruça em sistematizar a produção literária de mulheres atuando nos círculos literários ou salons, e nos direciona até a literatura de resistência nos anos 1960. Essa literatura, para a autora, torna possível uma compreensão do protagonismo da mulher palestina na sua dupla luta, simultaneamente patriarcal e anticolonial, evidenciando as etapas de amadurecimento da luta nacional como um todo.
Um entendimento da riqueza e multiplicidade do engajamento desses coletivos femininos, segundo a autora, se faz necessário para rebater o orientalismo e o feminismo branco, com suas referências eurocêntricas e coloniais que prevalecem hoje acerca da luta da mulher palestina.
O ativismo de mulheres e seu envolvimento direto na luta anticolonial e antipatriarcal muitas vezes são encobertos por outras questões de ordem interna, dando maior urgência para a libertação nacional e subestimando o eixo de gênero e enfraquecendo um registro íntegro e fidedigno das lutas anticoloniais. O detalhamento do ativismo das mulheres palestinas por meio da literatura e pela arte se traduz no trabalho de Soraya Misleh em um compêndio de grande importância, contendo referências e documentos que, além do seu valor intrínseco, servem como um acervo indispensável para trabalhos futuros sobre gênero e anticolonialismo.
Doutora em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP), Soraya é também autora de Al Nakba – Um estudo sobre a catástrofe palestina e referência em estudos sobre a questão palestina, feminismo anticolonial e literatura árabe. Uma história das mulheres palestinas: dos salons aos primórdios da literatura de resistência é seu segundo livro..
Texto originalmente publicado na apresentação do livro Uma história das mulheres palestinas: dos salons aos primórdios da literatura de resistência, por Muna Muhammad Odeh.









