Se você imagina que as capitais ocidentais estejam enfim perdendo a paciência com a fome fabricada por Israel em Gaza, após quase dois anos de genocídio, pode, no entanto, se decepcionar.
Como sempre, os acontecimentos seguiram seu curso — muito embora a fome extrema de dois milhões de habitantes de Gaza não tenha diminuído.
Líderes ocidentais expressam agora “indignação”, como diz a imprensa, diante do plano do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de “assumir controle total” de Gaza e então reocupá-la. Em algum momento no futuro, Israel parece disposto em entregar o enclave a forças externas, desvinculadas do povo palestino.
O gabinete israelense concordou com o primeiro passo: a tomada da Cidade de Gaza, onde centenas de milhares de palestinos estão amontoados em meio às ruínas, perecendo de fome. A cidade será cercada, despovoada sistematicamente e aplainada, com os sobreviventes supostamente transferidos ao sul, para uma “cidade humanitária” — novo vernáculo israelense para “campo de concentração —, onde ficarão confinados, aguardando a morte ou a expulsão.
No fim de semana, ministros das Relações Exteriores de Reino Unido, Alemanha, Itália, Austrália e outras nações ocidentais emitiram uma nota conjunta condenando a medida, ao alertar que “agravaria a catástrofe humanitária [em Gaza], arriscaria a vida dos reféns e aumentaria o deslocamento em massa de civis”.
A Alemanha, maior apoiador de Israel na Europa e seu segundo maior fornecedor de armas, atrás apenas dos Estados Unidos, alegou tamanha consternação que prometeu “suspender” — ou seja, atrasar — a exportação de suprimentos militares que auxiliaram Israel a assassinar e mutilar centenas de milhares de palestinos nos últimos 22 meses.
Netanyahu provavelmente não deve ficar muito preocupado. Sem dúvida, Washington intervirá e suprirá qualquer lacuna a seu Estado cliente no Oriente Médio.
Neste entremeio, o premiê mais uma vez desviou o foco sobre as provas incontestáveis das ações genocidas contínuas de seu regime — evidenciadas pelas crianças palestinas esqueléticas — a uma narrativa absolutamente distinta.
As manchetes se voltaram a sua estratégia em lançar outra “operação por terra”, a resistência que enfrenta de seus comandantes militares, quais serão as implicações aos israelenses ainda mantidos em cativeiro no enclave, se o exército ocupante está sobrecarregado e se o Hamas pode ser “derrotado” e “desmilitarizado”.
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Retornamos, novamente, às análises logísticas do genocídio — análises cujas premissas ignoram o próprio extermínio. Não seria isso parte essencial da estratégia de Netanyahu?
Vida e morte
Deve ser chocante que a Alemanha tenha sido instigada a parar de armar Israel — assumindo, é claro, que cumpra sua promessa —, não por causa de meses de imagens de crianças pele e osso, que ecoam Auschwitz, mas somente porque o Estado de apartheid enfim reconhecer desejar “assumir o controle” de Gaza.
É importante observar, é claro, que Israel nunca deixou de controlar Gaza e o resto dos territórios palestinos — em violação do direito internacional, como determinou o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), no ano passado. Israel detém controle absoluto sobre a vida e a morte do povo de Gaza todos os dias desde a expropriação do pequeno território costeiro há décadas e décadas.
No entanto, em 7 de outubro de 2023, milhares de combatentes palestinos romperam brevemente o cerco do campo de concentração imposto a eles e suas famílias, quando Israel baixou momentaneamente sua guarda.
Gaza há muito é uma prisão a céu aberto que o exército israelense controla ilegalmente por terra, mar e ar, ao decidir quem entra e quem sai. O regime ocupante manteve estrangulada a economia de Gaza e colocou a população “em dieta”, resultando em desnutrição crescente entre suas crianças muito antes da campanha de fome hoje em curso.
Presos atrás de uma cerca altamente militarizada desde o início dos anos 1990, incapazes de acessar suas próprias águas costeiras e com drones armados constantemente os vigiando e lançando morte dos céus, o povo de Gaza vivencia um verdadeiro campo de concentração altamente modernizado.
Todavia, a Alemanha e o resto do Ocidente se sentiam bem em apoiar tudo isso. Continuaram a vender armas a Israel, conceder-lhe status comercial especial e prover cobertura diplomática.
Apenas quando Israel leva a cabo a conclusão lógica de sua agenda de substituir o povo palestino nativo por colonos supremacistas judaicos, líderes ocidentais decidiram expressar sua “indignação”.
Artimanha de dois Estados
E por que resistência agora? Em parte, porque Netanyahu está puxando o tapete debaixo do pretexto ocidental de décadas para sustentar sua criminalidade: a fabulosa solução de dois Estados. Israel acatou a essa artimanha desde a assinatura dos Acordos de Oslo em meados dos anos 1990.
O objetivo nunca foi consolidar dois Estados. Em vez disso, Oslo estabeleceu um “horizonte diplomático” para “questões de status final” — que, assim como o horizonte físico, sempre permaneceu igualmente distante, não importa o quanto se movimentassem as partes em campo.
Lisa Nandy, secretária de Cultura da Grã-Bretanha, propagou exatamente o mesmo logro nas últimas semanas, ao exaltar as supostas virtudes da solução de dois Estados. À rede Sky News, reiterou: “Nossa mensagem para o povo palestino é muito, muito clara: Há esperança no horizonte”.
Todo palestino, porém, entendeu sua verdadeira mensagem, parafraseada como: “Nós mentimos a vocês por décadas e permitimos que um genocídio transcorresse nos últimos dois anos, diante dos olhos do mundo. Mas, veja, confie em nós desta vez. Estamos do seu lado.”
Na verdade, a promessa de um Estado palestino sempre foi tratada pelo Ocidente como pouco mais que uma ameaça — dirigida aos líderes palestinos. Oficiais palestinos devem ser sempre mais obedientes, mais mansos. Tinham que primeiro provar sua disposição de policiar a ocupação israelense em nome de Israel, ao reprimir seu próprio povo, para então, quem sabe, serem premiados.
O Hamas, é claro, não consentiu com esse teste em Gaza. Mas Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina na Cisjordânia ocupada, esforçou-se ao máximo para tranquilizar seus inquisidores, ao descrever como “sagrada” a cooperação com as forças de segurança israelenses. Na realidade, segue fazendo seu trabalho sujo.
Ainda assim, apesar do eterno bom comportamento da Autoridade de Abbas, o regime israelense prosseguiu em expulsar palestinos de suas terras ancestrais, expropriar essas terras — supostamente destinadas a um Estado palestino — e entregá-las a colonos extremistas apoiados pelo exército.
O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tentou débil e brevemente interromper o que o Ocidente chama de “expansão dos assentamentos” — isto é, a limpeza étnica de um povo nativo. Não obstante, recuou ao primeiro sinal de intransigência de Netanyahu.
Israel intensificou ainda mais seu processo de limpeza étnica na Cisjordânia ocupada nos últimos dois anos, enquanto a atenção global se voltava a Gaza — no que o jornal israelense Haaretz alertou como “carta branca” aos colonos.
Uma pequena janela para a impunidade aos colonos ilegais, enquanto conduzem seus pogroms para despovoar comunidades palestinas, ressaltou-se quando a ong israelense B’Tselem divulgou imagens do ativista palestino Awdah Hathaleen filmando inadvertidamente sua própria morte.
O colono extremista Yinon Levi, seu assassino, foi liberado sob “legítima defesa”, embora o vídeo o flagre mirando e atirando em Hathaleen à queima-roupa.
Álibi em frangalhos
É notável que, após anos sem mencionar a questão do Estado palestino, líderes ocidentais tenham revivido seu interesse apenas agora — quando Israel está tornando a solução de dois Estados irrealizável.
Isso se ilustra nitidamente por registros transmitidos pela emissora ITV. Filmadas de um avião supostamente assistencial, mostram a destruição em massa de Gaza — suas casas, escolas, hospitais, universidades, padarias, lojas, mesquitas e igrejas simplesmente desapareceram.
Gaza está em ruínas. Sua reconstrução levará décadas e décadas. Jerusalém Oriental ocupada e seus locais sacros foram há muito tempo tomados e judaizados pelo apartheid israelense, com absoluto consentimento ocidental.
De repente, as capitais percebem que os últimos remanescentes do suposto Estado palestino estão prestes a ser também engolidos inteiramente por Israel. Recentemente, a Alemanha alertou seu aliado que não deveria dar “nenhum passo adicional em direção à anexação da Cisjordânia” — ênfase em “adicional”.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, segue seu próprio caminho. Todavia, outras grandes potências — encabeçadas por França, Grã-Bretanha e Canadá — ameaçam reconhecer enfim um Estado palestino, mesmo após Israel obliterar qualquer possibilidade e viabilidade desse Estado.
A Austrália anunciou que se juntaria à iniciativa, após seu ministro das Relações Exteriores, alguns dias antes, expressar o que todos pensavam: “Há o risco de que não reste nenhuma Palestina para reconhecer se a comunidade internacional não agir para criar esse caminho a uma solução de dois Estados”.
Isso é algo que eles não ousam admitir, porque com isso vai embora seu álibi para apoiar todos esses anos de apartheid por parte de Israel, agora convertido nos estágios finais de um holocausto em Gaza.
Por essa razão, o premiê britânico Keir Starmer mudou desesperadamente de estratégia. Em vez de balançar o reconhecimento do Estado palestino como uma cenoura à frente do burro, para encorajar os palestinos a maior obediência — política britânica por décadas —, recorreu ao pressuposto como ameaça, em boa parte vazia, contra Israel.
Starmer prometeu reconhecer um Estado palestino caso Israel se recuse a um cessar-fogo e prosseguir com a anexação ilegal da Cisjordânia. Em outras palavras, seu governo alegou apoiar o reconhecimento da Palestina apenas depois de Israel avançar com seu apagamento completo.
Extraindo concessões
Ainda assim, a ameaça de reconhecimento da França e da Grã-Bretanha não é apenas tardia, serve a outros dois propósitos.
Primeiro, concede um novo álibi para a inação. Há formas muito mais eficazes para deter o genocídio. As capitais poderiam embargar a venda de armas e o compartilhamento de inteligência, impor sanções econômicas, romper laços com instituições coloniais, expulsar embaixadores hostis e rebaixar consideravelmente relações diplomáticas. Escolhem, no entanto, não fazer nada disso.
Segundo, o reconhecimento é projetado para extrair dos palestinos “concessões” que os tornarão ainda mais vulneráveis à violência israelense.
De acordo com o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Noel Barrot: “Reconhecer um Estado da Palestina, hoje, significa ficar ao lado dos palestinos que escolheram a não-violência, que renunciaram ao terrorismo [sic] e que estão preparados para reconhecer Israel”.
Em outras palavras, na visão do Ocidente, os “bons palestinos”, aqueles submissos a um regime que lhes impôs o genocídio.
Lideranças ocidentais há décadas imaginam um Estado palestino sob o pressuposto de que seja desmilitarizado. O reconhecimento, desta vez, se condiciona ao desarmamento do Hamas e que este concorde em deixar Gaza e toda e qualquer representação na Palestina, para que Abbas então assuma o enclave e então mantenha sua colaboração “sagrada” com as forças genocidas.
Como preço pelo reconhecimento, todos os 22 membros da Liga Árabe condenaram publicamente o Hamas e exigiram sua remoção de Gaza.
A bota sobre Gaza
Como tudo isso se encaixa na “ofensiva por terra” de Netanyahu? De fato, Israel não está “assumindo o controle” de Gaza, como alega. Sua bota permanece sobre o pescoço do enclave e sua população há décadas.
Enquanto as capitais ocidentais contemplam uma dois Estados, Israel prepara uma solução final de limpeza étnica em Gaza e em toda a Palestina
Starmer, por exemplo, sabia muito bem o que estava por vir. Dados aeronáuticos confirmam que o Reino Unido tem operado missões de vigilância sobre Gaza em nome de Israel, a partir de sua base no Chipre. Londres tem acompanhado, passiva e ativamente, cada passo do apagamento do enclave palestino
O plano de Netanyahu é sitiar e bombardear as últimas áreas povoadas no norte e centro de Gaza e empurrar os palestinos a um campo de concentração —facciosamente chamado de “cidade humanitária” —, ao longo da curta fronteira com o Egito. Israel provavelmente empregará os mesmos contratados que tem usado em outras partes de Gaza para ir de rua em rua, demolir ou explodir quaisquer prédios sobreviventes.
A próxima etapa, dada a trajetória dos últimos dois anos, não é difícil de prever. Trancados em sua distópica “cidade humanitária”, o povo de Gaza continuará a ser morto pela fome e pelos bombardeios sempre que Israel alegar identificar um combatente do Hamas, sem quaisquer provas, até que Egito ou outros regimes árabes sejam persuadidos a recebê-los, como um derradeiro gesto “humanitário”.
A única questão que resta é o que acontecerá com os “bens imobiliários”. Será construída a reluzente Riviera de Trump ou mais um aglomerado de assentamentos ilegais, como imaginados por Bezalel Smotrich e Itamar Ben Gvir — aliados abertamente fascistas de Netanyahu.
Há um modelo bem estabelecido a ser seguido, que foi usado em 1948 durante a violenta criação de Israel. Os palestinos foram expulsos em massa de suas cidades e aldeias ancestrais, no que era então chamado, em sua totalidade, de Palestina, através das fronteiras aos Estados vizinhos. O incipiente Estado de Israel, apoiado por potências ocidentais, começou então a destruir meticulosamente todas as residências naquelas centenas e centenas de vilarejos.
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Nos anos seguintes, foram convertidos em parques naturais ou comunidades exclusivamente judaicas, muitas vezes dedicadas à agricultura, para impossibilitar o retorno dos refugiados palestinos e suprimir qualquer memória dos crimes de Israel. Gerações de políticos, intelectuais e personalidades de cultura no Ocidente celebraram todo esse processo.
O ex-premiê britânico Boris Johnson e o ex-presidente austríaco Heinz Fischer estão aqueles que foram a Israel em sua juventude para trabalhar nesses colonatos agrícolas. A maioria regressou como emissários de um Estado colonial construído sobre as ruínas da pátria palestina.
Uma Gaza esvaziada pode se remodelar de maneira semelhante. Todavia, é muito mais difícil imaginar que desta vez o mundo esquecerá ou perdoará os crimes cometidos por Israel — ou por aqueles que os permitiram.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 13 de agosto de 2025
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