Ziad Rahbani: Um gênio da música conectado com seu povo

Ernesto ChahoudNatalie Shooter
4 meses ago

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Retrato do falecido compositor libanês Ziad Rahbani entre a multidão que se reuniu para velá-lo em frente ao Hospital Khoury, em Beirute, em 28 de julho de 2025 [Anwar Amro/AFP via Getty Images]

Na última semana, multidões se reuniram em frente ao Hospital Khoury em Beirute para dar adeus ao icônico e idolatrado compositor, pianista e dramaturgo libanês Ziad Rahbani, falecido aos 69 anos.

Rahbani, segundo relatos, recusou-se a passar por um transplante de fígado, após meses de questionamentos sobre o melhor tratamento para suas condições de saúde.

A multidão — vestida de preto, carregando rosas e bandeiras do Partido Comunista, libanesas e palestinas — entoou espontânea e solenemente Saalouni el Nass (O povo me perguntou), a primeira canção que Ziad compôs a sua mãe, Fairuz, com somente 17 anos.

Quando o carro fúnebre partiu com seu corpo a seu velório, em Bikfaya, a multidão eclodiu em aplausos e assobios — como se estivesse diante da última peça de Ziad, com as cortinas se fechando sobre um capítulo ímpar de autenticidade artística, rebelião política e social e genialidade intelectual.

Questionado por um repórter, “O que o Líbano perdeu hoje?”, Talal Haider, grande poeta libanês e amigo próximo de Ziad, retrucou: “O Líbano perdeu a si mesmo”.

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Camarada Ziad

Muito jovem, em meio à guerra civil, Ziad deixou o leste de Beirute, onde vivia sua família, para morar em Hamra — então o âmago do Partido Comunista e da esquerda pró-Palestina no Líbano, dentre amigos e camaradas.

Em Hamra, Ziad passou a maior parte de sua vida. Sua casa e seu célebre estúdio, Nota, ficavam ali. Suas peças históricas — que deram corpo à vida diária, à consciência coletiva, ao sarcasmo e ao vocabulário de décadas do povo libanês — foram realizadas pela primeira vez em teatros como o Piccadilly de Beirute. Ziad apresentou também incontáveis concertos nos pequenos clubes de jazz e bares de hotel na região.

Desde a década de 1970 até hoje, sua música toca diariamente nos bares e cafés de Hamra — muitos dos quais ele mesmo frequentava.

E na segunda-feira, 28 de julho, deixou Hamra para sempre.

Este foi o funeral do povo para Ziad Rahbani, conhecido afetuosamente como Camarada Ziad. A multidão que encheu as ruas incluiu amigos, vizinhos, camaradas, atores, músicos, escritores e poetas de toda a sociedade, obviamente, também seus fãs — toda uma geração, que cresceu com sua música e suas peças.

Não há uma única casa no Líbano em que Ziad não esteve presente. Seu trabalho tocou a todos e mesmo aqueles que divergiam de sua política ouviam, secretamente, sua música.

Ziad foi um ícone cultural, um visionário, mas viveu com modéstia, entre seu povo e sua comunidade.

As peças de Ziad, carregadas de realismo social e pungência política, entre as décadas de 1970 e 1990, trouxeram-lhe aclamação nacional. Embora tenha contribuído antes a peças de seu pai e seu tio — o monumental dueto conhecido como Irmãos Rahbani —, em produções como Al Mahatta (A estação, 1973) e Mais El Rim (1975), Ziad logo atingiu uma voz única e distinta como ator, dramaturgo e diretor.

Sua segunda peça, Nazel el Surour (Hotel Felicidade, 1973), escrita quando tinha somente 18 anos, foi um ponto de inflexão no teatro árabe moderno. Uma mordaz sátira política — muitas vezes interpretada como tendo prenunciado a guerra civil — abordava temas como corrupção e desigualdade de classe, e caçoava do fracasso de ideais revolucionários. Em Bennesbeh Labokra… Chou? (Que tal amanhã?), Ziad se concentrou nas lutas e dificuldades diárias dos trabalhadores libaneses.

Em Film Ameriki Tawwil (O grande filme americano), inspirado em One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Um estranho no ninho, de Milos Forman, 1975), explorou o sectarismo, ao criticar seu discurso e expor sua banalidade diante da guerra civil.

As peças de Ziad — apresentadas religiosamente ao longo da guerra e até hoje — combinavam assuntos complexos e profundos com um humor fatalista, ao dissecar sua própria sociedade; enlaçavam o absurdismo da vida sob políticas sectárias, classismo e guerra — temas que infelizmente não perderam sua relevância ainda hoje.

As canções que compôs para suas peças, com influências desde a música brasileira, ao soul, funk, jazz e dabke palestino, revelavam conhecimento enciclopédico sobre música, bem como habilidade brilhante em arranjo e composição, ao mesclar diferentes gêneros e estilos.

O pai do ‘jazz oriental’

As trilhas atemporais de Ziad vieram a definir a musicalidade dos movimentos de esquerda, e piadas e frases de suas peças criaram raízes na conversa cotidiana, como parte do tecido cultural. Seu trabalho foi uma força motriz na consciência política libanesa. Ziad conferiu personalidade aos movimentos de esquerda que integrou, com ideias, escritos e canções.

A contribuição de Ziad à música árabe e libanesa foi revolucionária, ao estabelecer fundações a sua jornada à modernidade. Ziad criou seu próprio mundo, com concepções pioneiras que culminaram em ondas de vanguarda. Ziad foi um gênio musical, que conseguiu criar uma identidade distinta, para além da sombra dos Irmãos Rahbani — seu pai Assi e seu tio Mansour — ou de sua mãe, Fairuz, que por décadas dominou a indústria musical libanesa.

Como artista, sua contribuição musical é difícil de categorizar — elegante e complexa, e ainda assim sutil; experimental, e ainda assim acessível; sem jamais perder sua originalidade.

Ao longo de sua carreira, cobriu todo um espectro de estilos, incluindo os temas clássicos dos Irmãos Rahbani, a pouco ortodoxa dança do ventre, o jazz árabe, o funk e disco, o dabke, o tarab, a canção de protesto e a música brasileira. Ziad absorvia elementos dos gêneros que amava para compor os novos capítulos da música árabe, ao torná-la unicamente Ziad. Um verdadeiro gênio, Ziad transmitia suas ideias de modo a se conectar de imediato com todo seu povo.

Ziad Rahbani foi o pai do “jazz oriental”, termo que adotou — mais tarde criticou —, quando fundiu o jazz tradicional e a música árabe, em numerosos projetos, que se tornaram parte de sua identidade.

Embora grandes nomes já trouxessem uma variedade de influências internacionais, a contribuição Ziad deixou um marco inegável na canção árabe contemporânea.

Podemos traçar os primórdios do jazz oriental a Abu Ali — versão instrumental da introdução de sua peça Abu Ali Al Asmarani, de 1974. Gravada em Atenas, com a orquestra sinfônica de 35 peças de uma rádio local e alto orçamento, e lançada pelo selo inovador e independente Zida, do produtor armênio-libanês Khatchik Mardirian, a produção desta obra-prima, com 13 minutos de duração, tomou dois anos para germinar.

Ziad chegou até mesmo a arranjar o voo de amigos próximos para participarem do projeto, incluindo o ator e cantor Joseph Sakr, seu colaborador de longa data, além do saxofonista Toufic Farroukh e do guitarrista Issam Hajali, membros do grupo cult, bastante politizado, Firkat Al Ard, com quem trabalhava na época

Com objetivo de alcançar o amplo mercado de disco, Abu Ali não obteve o tão esperado sucesso internacional quando foi lançado, em 1979, mas consagrou o talento incomensurável de Ziad como compositor, bem como seu perfeccionismo — por vezes, ao ponto de obsessão — no que se travava de arranjo e instrumentalização.

Como disse Hajali em entrevista sobre Abu Ali: “Ziad escreveu tudo. Nada foi acidental. Tudo estava escrito, até mesmo um suspiro”. Quarenta anos depois, conquistou celebridade e culto, ao tocar em rádios e na cena underground de todo o mundo.

Em sua mesma passagem pela Grécia, Fairuz gravou seu álbum Wahdon de 1979. Também lançada pela Zida, tornou-se um trabalho marcante a uma cantora já idolatrada — o primeiro inteiramente composto e produzido por seu filho. Sua colaboração atravessou décadas. Ziad revolucionou o som de sua mãe, ao modernizá-la a uma nova geração de ouvintes e trazer uma plétora de influências, do jazz à música brasileira, em álbuns como Kifak Inta?, Maarifti Feek e Wala Keef?.

A transformação do estilo musical de Fairuz — junto de suas letras ousadas — foi a princípio controversa a parte do público falante do árabe. Ao partir de um estilo folclórico e romântico e denso lirismo, que definiu os Irmãos Rahbani, quando Fairuz se posicionou como voz etérea do ideal sacralizado do Líbano, Ziad aproximou sua mãe do povo e de um Líbano e mundo árabe em célere metamorfose, ao elevá-la, de símbolo nostálgico a uma artista moderna.

Firme e inabalável

Ziad viveu sua vida e fez sua música com um resoluto alinhamento a sua visão e seus ideais — sempre firme e inabalável. Ziad manteve uma forte consciência social e política em toda sua obra, ao combater toda e qualquer forma de comercialismo, consumismo e capitalismo, seja na música como na sociedade.

Ziad se envolveu profundamente na vida política libanesa, ao expressar opiniões contundentes — por vezes, controversas — sobre o que acontecia no país e na região, em artigos, canções, programas de rádio e entrevistas. Seu ponto de vista, sua análise política e seu humor mordaz concebeu ondas e ondas na sociedade libanesa, até mesmo entre seus oponentes políticos.

Para o músico, nada poderia ser feito pela metade. Música e política eram tudo que importava. Viveu uma vida livre, em seus próprios termos, e da mesma forma partiu.

No entanto, não foi apenas um colosso cultural; Ziad foi um léxico, um humor, um sentimento e o próprio âmago da identidade libanesa. Sua lenda, seu legado sobreviverão para sempre.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 1º de agosto de 2025

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