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Dentro do tráfico: Como o captagon está alimentando a guerra no Sudão

O colapso do comércio de fenetilina na Síria levou traficantes a buscar novos mercados, incluindo os campos de batalha no nordeste da África

3 de agosto de 2025, às 09h00

Centro de Cartum, capital do Sudão, em meio à guerra civil, em 14 de julho de 2025 [Ahmed Satti/Agência Anadolu]

No âmago de um subúrbio industrial, na margem leste do Nilo, repousam três prédios banais, mal-acabados, cercados por minas terrestres.

Há meses, lideranças paramilitares das Forças de Suporte Rápido (RSF) alertam moradores da região a ficarem longe desse complexo fortificado. Um breve olhar adentro revela o motivo: máquinas e produtos químicos que, segundo as autoridades, eram utilizados para produzir aproximadamente mil comprimidos por hora de captagon.

Popular entre combatentes e frequentadores de festas no Oriente Médio, especialmente na última década, essa anfetamina barata e viciante — que aumenta a concentração, a resistência física e induz euforia — tem sido um flagelo para os governos árabes.

Segundo fontes de segurança, a RSF distribui a droga gratuitamente a seus combatentes para aumentar o estado de alerta e suprimir a fome, ou a vende para civis com o objetivo de angariar recursos.

Até dezembro, a Síria era o principal centro de produção e exportação de captagon. Mas a queda do regime de Bashar al-Assad, profundamente envolvido nesse mercado, expôs e fechou diversos laboratórios de captagon, além das rotas usadas por contrabandistas.

Apesar de a produção de captagon ter sido afetada pelo fim da guerra civil na Síria, dois mil quilômetros a sudeste, outro conflito abriu oportunidades.

Como o captagon está chegando ao Sudão

No começo deste ano, as Forças Armadas sudanesas, em guerra com a RSF desde abril de 2023, expulsaram os paramilitares de Cartum e do estado homônimo que cerca a capital.

A região próxima à refinaria de petróleo de al-Jaili, ao norte de Cartum Bahri, foi uma das primeiras áreas tomadas na ofensiva. E foi lá, em fevereiro, que esta fábrica de captagon foi descoberta.

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O local abriga cinco máquinas. Duas delas — uma prensa de comprimidos e um misturador industrial — estavam em uso quando o local foi abandonado. Um resíduo branco fino reveste partes da prensa.

“Também encontramos comprimidos dentro dela”, disse o major-general Jalal al-Din Hamza, da polícia antidrogas, ao Middle East Eye. Segundo Hamza, esses comprimidos tinham o hilelein, o símbolo de duplo crescente, que se tornou a marca não-oficial da produção ilegal de captagon.

As outras três máquinas ainda estavam embaladas em caixas de madeira.

Ao lado da prensa de comprimidos estava a caixa em que a máquina, ao que parece, foi transportada. De um lado, uma etiqueta de transporte indica importação pela Amass Middle East Shipping Services, uma empresa radicada em Dubai. Ao inserir o número de identificação de carga no sistema de rastreamento online da Amass, nenhum resultado é exibido.

O MEE solicitou um comentário à Amass Middle East Shipping Services, mas não obteve resposta. A RSF tampouco respondeu aos contatos.

Dubai é um dos principais portos no Mar Vermelho. Sabe-se que a RSF tem laços estreitos com os Emirados Árabes Unidos. Embora a monarquia negue apoiar a RSF, há evidências de que armas emiradenses continuam entrando no Sudão.

O MEE compartilhou imagens das máquinas com Caroline Rose, do Instituto New Lines, em Washington. “Minha principal conclusão é que o equipamento registrado nas fotos é extremamente semelhante aos aparelhos de cozinha e laboratório encontrados em laboratórios sírios no último ano”, disse a especialista.

‘Acordado o dia e a noite inteira’

Em outra parte do complexo, há uma grande sala de concreto escura, coberta por centenas de pacotes de pó branco.

Os sacos são de dois tipos: um está rotulado como suplemento alimentar veterinário, o outro como eletrólitos para animais. Ambos indicam que foram produzidos na Síria e não são destinados ao consumo humano.

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O Middle East Eye tentou encontrar registros das marcas mencionadas nos pacotes — como PropioTech e Technomix Plus — em outros lugares, sem sucesso. A distribuidora listada, Hi Pharm Veterinary Medicines Co, sequer consta no registro comercial sírio.

A Hi Pharm possui um endereço de e-mail do Yahoo, que o MEE tentou contatar, mas a mensagem foi devolvida. Também há um endereço em Barzeh, subúrbio de Damasco, “ao lado do Centro de Pesquisa Científica”.

A polícia sudanesa investiga se os ingredientes listados nos pacotes — uma variedade de vitaminas e minerais — poderiam ser usados para fabricar captagon.

No entanto, uma análise do MEE sugere o contrário, pois nenhum dos componentes mencionados é usado na produção de anfetamina ou teofilina — as duas substâncias que formam a fenetilina, nome químico do captagon.

Além disso, Caroline Rose observa que os pacotes são “diferentes dos suplementos nutricionais veterinários tradicionais — tanto nos níveis de vitaminas quanto nos tipos incluídos”.

O pó é possivelmente uma espécie de matéria-prima seca do captagon, disfarçada como suplemento veterinário ou eletrólito, pronta para ser transformada em comprimidos.

“Talvez eles tenham apenas colocado precursores nesses pacotes e dito: ‘Olha, se virar comprimido, virou, e não tem problema’”, especulou Rose.

Comprimidos de captagon frequentemente contêm zinco, cobre, cafeína e outros materiais que, intencionalmente ou não, acabam na mistura.

“Não acho que esses grupos criminosos se importem muito com os aditivos químicos”, acrescentou Rose. “Eles apenas buscam triturar os materiais e fabricar as pílulas. Talvez o plano aqui fosse simplesmente despejar os precursores nesses pacotes e produzir a maior quantidade possível de captagon”.

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Segundo relatos, um membro das forças de segurança sudanesas bebeu um copo de água com duas colheres do pó dissolvidas e “ficou acordado por dois dias” — comportamento incompatível com o consumo de eletrólitos.

“Ficou acordado todo o dia e a noite inteira”, destacou uma fonte.

Do Sudão ao Golfo?

Hamza, o policial, afirma que o uso de captagon não era disseminado no Sudão antes do conflito, mas “aumentou violentamente durante a guerra”.

O primeiro laboratório descoberto foi em 2015, em Jabal Awliya, quarenta e cinco quilômetros ao sul de Cartum, com capacidade de cinco mil comprimidos por hora. Três meses antes do início da guerra, em abril de 2023, outro laboratório, ainda maior, foi encontrado no estado do Nilo Azul, no leste do país.

A polícia diz que a fábrica em al-Jaili é a maior descoberta desde abril de 2023. Sua descoberta veio seis meses após outra, também ao norte de Cartum.

Curiosamente, um enorme buraco, com vários metros de largura e profundidade, foi escavado dentro do complexo. Imagens de satélite mostram que ele não existia em 14 de abril de 2023, um dia antes de eclodir a guerra.

“Suspeitamos que planejavam usá-lo para armazenar milhares de comprimidos”, comentou Hamza. Contudo, não confirmou se o captagon era fabricado para exportação, ao alegar que a informação seria sensível e que as investigações estariam em curso.

O colapso do mercado sírio deixou um vácuo na indústria — mais de 200 milhões de comprimidos foram apreendidos e destruídos pelo novo governo. Mas o lucrativo mercado do Golfo está a apenas um pulo do Mar Vermelho.

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Um relatório recente do Instituto New Lines ressaltou que as apreensões na Síria não resultaram na prisão de produtores, contrabandistas e distribuidores.

“O conhecimento técnico para produzir captagon permanece intacto e pode ser realocado”, observou o dossiê.

Rose observa que laboratórios de captagon vêm sendo desmantelados no Sudão quase todo ano desde 2022.

“Não vemos outros laboratórios em países vizinhos”, reiterou. “Por um tempo, achou-se que fossem ações isoladas, talvez um transbordamento do mercado sírio. Mas se há materiais de embalagem sírios envolvidos, pode haver uma conexão mais próxima com o regime de Assad e redes criminosas antes sediadas na Síria.”

Publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 28 de julho de 2025