‘O bolo do presidente’: Hasan Hadi sobre Iraque, sanções e sua estreia em Cannes

Joseph Fahim
5 meses ago

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Para o diretor iraquiano Hasan Hadi, ganhar a Câmera de Ouro de melhor primeiro filme no Festival de Cannes do mês passado não é somente o reconhecimento de seu talento, mas sim um marco a colocar o cinema iraquiano no mapa mundial.

Seu filme de estreia, O Bolo do Presidente — primeiro longa-metragem iraquiano exibido em Cannes — é uma raridade no cinema árabe: uma fábula comovente e envolvente que envolve sua crítica política afiada em um realismo mágico profundamente enraizado na mitologia do país.

“Eu estava no palco [em Cannes] e [o diretor iraniano, vencedor da Palma de Ouro de 2025] Jafar Panahi virou para mim e disse: ‘Ganhei esse prêmio trinta anos atrás, e foi muito difícil fazer outro filme depois disso’”, revelou Hadi.

As comparações com as primeiras obras de Panahi (O Balão Branco) e Kiarostami (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?) são pertinentes, mas não se enganem: O Bolo do Presidente é uma obra singular por mérito próprio. A estreia de Hadi se consolida como um dos filmes mais notáveis ​​do Oriente Médio deste ano — e, podemos firmar, a maior obra cinematográfica iraquiana já produzida até hoje.

O diretor estabelece o tom surreal do filme desde os primeiros instantes: a atmosfera onírica de um pântano de beleza impressionante, com barcos que deslizam lentamente, é subitamente interrompida pelo ruído de helicópteros. Vemos à direita uma longa fila de famílias, diante de um caminhão-pipa, sob os gritos de um homem: “Água, água! Presente do presidente!”

É o sertão iraquiano do início dos anos de 1990. O país está tomado por sanções econômicas impostas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, após a eclosão da Primeira Guerra do Golfo, com enorme inflação e desemprego. 

Somos apresentados a Lamia — a surpreendente estreante Baneen Ahmad Nayyef —, uma menina alegre e brilhante, de nove anos, que vive com sua avó Bibi — interpretada por Waheed Thabet Khreibat —, em uma casa modesta. 

Apesar das condições econômicas devastadoras, o notório autocrata Saddam Hussein continuava a obrigar seu povo a comemorar seu aniversário em 28 de abril e cada turma escolar era encarregada de preparar um bolo para o líder do Partido Baath.

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Recentemente demitida de seu trabalho em uma fazenda, Bibi implora que Lamia evite ser escolhida para fazer o bolo, pois não tem como comprar os ingredientes. Lamia tenta faltar no dia do sorteio, mas acaba escolhida para a funesta missão de preparar o bolo presidencial.

Irritadiça e secretamente desamparada, Bibi leva a neta até a cidade mais próxima para comprar farinha, açúcar e ovos — caros e escassos — necessários para a receita. Lamia, porém, logo escapa de sua vigilância e parte sozinha em busca dos ingredientes, ajudada apenas por seu galo de estimação e pelo melhor amigo, Saeed — Sajad Mohamad Qasem.

Assim começa uma odisseia pela alma dilacerada do Iraque — uma nação destroçada pelo duplo mal das sanções econômicas brutais e de um líder egomaníaco completamente desconectado de seu próprio povo.

Bondade implacável

Em sua jornada, Lamia encontra uma multiplicidade de personagens: o carteiro bondoso que entrega as epístolas de adulação ao presidente; o soldado cegado por um míssil americano que se prepara para se casar com uma noiva que jamais viu; o proprietário da mercearia que ajuda crianças para seduzir uma cliente solidária a sua causa; e o comerciante pedófilo que planeja abusar de Lamia.

Hadi pinta um retrato cru — porém nunca opressivo — de um mundo de “cada um por si”, onde a moralidade se esvai, revelando uma nação zumbi, senão mantida viva somente por aparelhos. Sua crítica política é contundente, sem encontrar diferenças entre a megalomania de Saddam e a casual ambivalência do Ocidente sobre os civis iraquianos.

No início do filme, Bibi cita um trecho da Epopeia de Gilgamesh — a história mais antiga do mundo, originária do Iraque Antigo: “Deus disse a Gilgamesh: ‘Olhe na água, e verá seu amado. E Deus prometeu que aqueles com corações puros verão a imagem de seus amados na água.’”

A passagem não apenas imprime um tom mítico à narrativa, mas prepara o espectador a uma representação atípica do Iraque: uma cultura multifacetada, deformada e simplificada pela narrativa ocidental.

A jornada de Lamia desafia as convenções dos filmes de amadurecimento. A pureza da esperta menina não se corrompe; a crueldade que encontra não a muda. Sua determinação não vacila; a cidade tampouco apaga sua crença na bondade. Como a água mencionada por Gilgamesh, Lamia preserva a pureza de seu coração, por meio da magia, da amizade e do amor.

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Como a maioria dos iraquianos, contudo, Lamia está exausta — e esse cansaço impregna o final de sua jornada e sua conclusão devastadora.

Jornada para a América

A jornada de Hadi para realizar seus sonhos foi tão hercúlea quanto a de sua heroína.

Criado em Bagdá, Hadi estudou Administração na Universidade Americana de Beirute — um diploma que conquistou “para meus pais”, como ele mesmo diz.

Sua paixão pelo cinema começou no início dos anos 1990, com fitas VHS contrabandeadas, desde Godzilla até Bruce Lee, que ele só podia assistir em sua pequena televisão após os pais dormirem. Estudar cinema era inconcebível em um país que não teve salas de cinema funcionando de 1990 a 2008.

Hadi acabou deixando sua carreira estável para trás e, em 2015, conquistou uma bolsa de estudos integral na Escola de Artes Tisch da Universidade de Nova York (NYU) —alma mater de cineastas como Martin Scorsese, Ang Lee e Spike Lee. Entretanto, sem qualquer outra razão além de sua nacionalidade iraquiana, seu visto de estudante foi negado três vezes consecutivas.

“Você não só entra em uma das melhores escolas dos Estados Unidos, como ganha uma bolsa integral, mas isso não basta para receber um visto”, recordou Hadi.

A NYU normalmente não adia matrículas, mas, graças à diretora do programa, Barbara Schock, a universidade manteve a vaga do cineasta durante esses três anos.

“A cada recusa do visto, todo mundo me dizia: ‘Não é pra ser; talvez você não devesse entrar nessa área’”, contou o diretor.

Hadi queimou as pontes com seu trabalho anterior, ao se recursar a desistir de seu sonho, mesmo sabendo que não poderia mais voltar à segurança de sua antiga carreira. Na terceira recusa, a universidade americana começou a duvidar que a bolsa se concretizasse. Decidiu tentar uma quarta — e última — vez. No consulado, disseram-lhe que seu visto precisava de um processo administrativo, que poderia levar de um dia a seis meses.

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Três anos depois, Hadi finalmente recebeu seu visto. Contudo, enquanto se preparava para ir para Nova York, em 2016, Trump impôs sua infame proibição de viagens a cidadãos iraquianos.

“Eu estava convencido de que realmente não era pra ser”, comentou Hadi. “Era difícil aceitar. Você começa a culpar a si mesmo, seu país, sua identidade. ‘Talvez a gente realmente seja um fracasso’, pensei”. Um dia antes de sua partida, Trump retirou o Iraque — e apenas o Iraque — de sua lista.

“Talvez ele soubesse que eu já tinha sofrido o suficiente”, brincou o diretor.

Hadi descreve Nova York como uma “cena cultural que nunca tinha visto antes. Cinemas exibindo filmes antigos? [O mestre russo] Tarkovsky na tela grande? Nouvelle Vague romena? DVDs que você pode assistir em salas de projeção? Foi alucinante. Parecia uma loja de doces”, destacou. “Trabalhar com talentos de todo o mundo me fez perceber o quanto minha perspectiva ainda era limitada.”

Como as sanções destruíram uma nação

O bolo de aniversário de Hussein era uma relíquia da infância de Hadi que jamais o abandonou — um símbolo dos anos de sanções nunca retratados antes no cinema.

“Quando você quebra um homem — um professor, um funcionário público — ele nunca mais será o mesmo, não importa o que aconteça. Foi isso o que aconteceu com toda a nossa sociedade”, explicou Hadi. “Imagine que você é um professor, ganha US$800 por mês — o salário médio dos professores nos anos 1980 — e passa de planejar férias de verão ​​a não conseguir comprar uma dúzia de ovos. Naquela época, as pessoas vendiam tudo o que tinham para sobreviver. Professores forçavam alunos a terem aulas particulares, sendo ruins em sala e tornando as provas impossíveis. Comprometiam sua integridade para conseguir viver. E os alunos acabavam por pressionar os pais a aceitarem subornos para pagar as aulas”

“Era um grande círculo vicioso engolindo toda a sociedade. Como Dostoiévski escreveu em Crime e Castigo, você se sente culpado com o primeiro assassinato. Depois, sente prazer, porque planeja mais — porque o que o impedia de fazer aquilo já se rompeu”, acrescentou.

Hadi acredita que os males atuais do Iraque — corrupção, analfabetismo, saúde pública precária, colapso industrial — estão enraizados nos anos de sanções.

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“As sanções foram mais devastadoras do que a invasão americana. A invasão foi… você mata, você vai embora. Sanções são a ferramenta mais violenta imposta a cidadãos comuns”, observou. “Quando seus pais não podem mais sustentar você; quando você é forçado a fazer coisas que não quer, algo dentro de você muda para sempre”.

Sanções são uma forma de terrorismo. Você aterroriza as pessoas cortando sua comida, remédios e meios de sobrevivência.

“O Iraque sobreviveu à guerra com o Irã. A economia seguiu forte; a educação era excelente”, notou Hadi. “Mas olhe para o Iraque após as sanções. Olhe para a Síria e o Irã depois das sanções. Sanções nunca removem ditadores; pelo contrário, os fortalecem, porque você limita os recursos disponíveis para o povo e os concentra nas mãos dos mais poderosos. Saddam ficou muito mais forte depois das sanções”.

Amor a Saddam

“Cheguei muito perto de cair na Síndrome de Estocolmo”, admitiu Hadi quando perguntei sobre sua percepção de Saddam durante a infância. “Meus pais nunca se sentaram para me instruir sobre como falar do presidente. Acontecia naturalmente. Sabíamos que Saddam era ruim, mas ninguém podia falar sobre ele. Passamos a racionalizar seu comportamento — talvez ele aja assim para nos proteger; porque os outros é que são as pessoas más. Inventa-se desculpas para sobreviver”.

Um aspecto marcante de O Bolo do Presidente é como alguns personagens são descaradamente amorais.

Sobretudo, o professor de Lamia, baseado em uma pessoa real, exibe sua conexão com o regime, revelando sem pudor que é um informante do Estado que puniu — e continuará punindo — qualquer aluno que insista em desobedecer.

O Iraque de Hadi é um lugar atolado em desconfiança, decadência e oportunismo.

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“Esposas denunciavam seus maridos; maridos denunciavam suas esposas. Filhos delatavam seus pais; pais delatavam seus filhos”, lamentou o cineasta. “Nossa sociedade foi toda convertida em informantes. O regime virou as pessoas umas contra as outras, e a delação tornou-se uma prática generalizada”

A maioria dos atores do filme não são profissionais; muitos interpretaram a si mesmos.

O que é notável nos personagens de Hadi é como são abertos sobre sexo e religião. Sua representação do Iraque é completamente distinta do lugar conservador que o Ocidente sempre imaginou.

“O Iraque é certamente muito mais conservador agora — um subproduto das guerras e da pobreza”, comentou. “Em 1991, houve uma revolta contra Saddam. [O então presidente dos Estados Unidos] George H. Bush incentivou os iraquianos a derrubá-lo. Quase todas as cidades caíram nas mãos dos rebeldes. Washington se deparou, entretanto, com receios de que o país se tornasse outro Irã e decidiu fornecer caças e helicópteros a Saddam”.

“Após esmagar a rebelião, Saddam lançou a ‘Campanha da Fé’, que introduziu o wahhabismo no país pela primeira vez”, minuciou o cineasta. “Em 1998, Saddam achou que os novos fiéis estavam indo longe demais e decidiu matar muitos deles. Foi perturbador! Mas foi assim que o país se tornou religiosamente conservador, junto com a ascensão dos partidos islâmicos em 2003”.

Drenando o pântano

Um elemento fundamental da estrutura visual do filme é o contraste palpável entre os pântanos folclóricos, com suas vastas pastagens e águas tranquilas, e a cidade movimentada com seus becos antigos, recantos e agitação incessante — uma oposição entre o fabulismo dos charcos e o realismo da cidade.

“Os pântanos são parte integrante da identidade iraquiana. As pessoas viviam lá da mesma forma que viviam há sete mil anos”, notou Hadi. “Eu queria levar os espectadores em uma jornada por um Iraque que nunca viram antes. Acho que as pessoas não imaginavam que o Iraque tinha tanta água”.

Nesse sentido, O Bolo do Presidente é uma carta de amor aos pântanos da Mesopotâmia —uma maravilha natural iraquiana, drenada e destruída por Saddam, como punição pelo papel das tribos Ahwari na malograda revolta de 1991.

“Um dos maiores crimes ambientais já cometidos”, ressaltou Hadi. “Depois de 2003, a água foi devolvida ao que havia se tornado um deserto. Os aldeões que partiram estavam acostumados com os confortos da cidade e se negaram a voltar. Há pessoas que vivem nos pântanos hoje, mas não é como antigamente”.

No início do filme, vemos fogo consumindo casas e pessoas deixando seus lares, uma referência à época em que Saddam despejou sal na água para expulsar os aldeões. Esses momentos impactantes podem passar despercebidos pelo público internacional, mas para os iraquianos, as casas em chamas carregam memórias e traumas.

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Ao contrário da grande maioria dos filmes iraquianos produzidos neste século, que contaram com uma combinação de limitados recursos locais e o habitual financiamento europeu, O Bolo do Presidente seguiu um caminho não tradicional de financiamento, reunindo seu orçamento no Iraque e através de capital privado americano.

A inclusão de Eric Roth — icônico roteirista vencedor do Oscar por Forrest Gump, O Curioso Caso de Benjamin Button, Duna Parte 1, e um dos mentores de Hadi no Laboratório do Festival de Sundance — na equipe de produção elevou o perfil da obra, ajudando-a a obter um acordo de distribuição nos Estados Unidos com ostensiva divulgação do estúdio Sony Pictures.

O Bolo do Presidente é o primeiro filme árabe ao qual Roth empresta suas credenciais, em posição privilegiada para, quem sabe, concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no próximo ano.

Artigo publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 5 de julho de 2025, com pesquisa adicional de Amber Rahman.

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