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Histórias por contar de 9.500 reféns

9 de março de 2025, às 03h21

Palestina de 17 anos Rose Khwais é recebida por uma familiar na chegada de cerca de 90 prisioneiros libertados por Israel nas primeiras horas de 20 de janeiro de 2025 na cidade ocupada de Beitunia, na Cisjordânia, nos arredores de Ramallah. [Zain JAAFAR / AFP/ Getty Images]

A BBC publicou dia em 27 de fevereiro um pequeno resumo dos perfis de 59 israelenses que permanecem detidos em Gaza, assim como tem feito com mais detalhes sobre cada grupo libertado pelo Hamas nas trocas de prisioneiros. Da publicação sobre os que permanecem em Gaza, se vê pelas fotos e idades que são na maioria jovens, parte dos quais foi levada da rave que ocorria perto do muro de confinamento de Gaza e outros do kibutz próximo dali. 

Soldados israelenses detêm palestinos de Gaza, vendados e algemados, na fronteira do enclave, em 1º de agosto de 2007 [David Furst/AFP/Getty Images]

Soldados israelenses detêm palestinos de Gaza, vendados e algemados, na fronteira do enclave, em 1º de agosto de 2007 [David Furst/AFP/Getty

O que chama a atenção no jornalismo praticado pela mídia britânica não é a humanização dos números dos reféns israelenses, mas a desumanização dos reféns palestinos sequestrados por décadas sem menção no noticiário internacional ou interesse da mídia por suas vidas.

São hoje cerca de 9.500 palestinos sem rosto, transformados em estatística. Quase metade deles foi sequestrada por Israel desde 7 de outubro. Permanecem encarceradas ao menos 21 mulheres e 350 crianças segundo organizações de direitos humanos, sendo uma das presas uma menina de apenas 12 anos. 

Mulheres confinadas e torturadas

Em uma declaração emitida no Dia Internacional da Mulher, o Clube dos Prisioneiros Palestinos  – associação que monitora a situação dos encarcerados – afirmou que  “a política de deter mulheres palestinas tem sido uma das medidas sistemáticas mais proeminentes empregadas pela ocupação israelense, historicamente visando mulheres, inclusive menores de idade.”, e que as detidas sofrem “abuso sistemático em prisões israelenses, particularmente desde o início da guerra genocida de Israel em Gaza.” 

Outros dados divulgados pela Agência Anadolu dão conta de que 490 mulheres foram detidas por Israel desde 7 de outubro em Gaza, Jerusalém e Cisjordânia. A contagem é imprecisa, mas a prática de prisões ilegais é fartamente demonstrada pelo fato de que, na primeira troca de prisioneiros  foram libertadas nada menos do que 150 mulheres e crianças palestinas, como condição do acordo de cessar-fogo. E muitas estavam presas há muito tempo.

A prisioneira palestina Khalida Jarrar, uma figura da Frente Popular Marxista para a Libertação da Palestina (FPLP), é recebida por simpatizantes após sua libertação da prisão israelense nas primeiras horas de 20 de janeiro de 2025, na cidade ocupada de Beitunia, na Cisjordânia, nos arredores de Ramallah [Zain Jaafar/AFP via Getty Images]

A prisioneira palestina Khalida Jarrar, uma figura da Frente Popular Marxista para a Libertação da Palestina (FPLP), é recebida por simpatizantes após sua libertação da prisão israelense nas primeiras horas de 20 de janeiro de 2025, na cidade ocupada de Beitunia, na Cisjordânia, nos arredores de Ramallah [Zain Jaafar/AFP via Getty Images]

O caso de Khalida Jarrar ficou mais conhecido por ser uma destacada liderança e parlamentar integrante do Conselho Legislativo Palestino, presa seguidamente desde 2012 – quando foi acusada de criticar a ocupação israelense – e que antes da libertação em 19 de janeiro de 2025 na troca de prisioneiros  foi mantida por cinco meses em confinamento solitário Sua filha morreu enquanto ela estava em cativeiro, sem autorização para o funeral. 

Outra prisioneira “administrativa”  libertada, Yasemin Abu Surur, 27, confirmou que as mulheres listadas nos acordos ficaram completamente isoladas  nos dias que antecederam sua libertação.

Adolescência sequestrada

Sobre as prisões de menores de idade, a última denunciada pela organização Defence for Children International Palestine (DCIP) é de um palestino de 14 anos de idade.  Muin Ghassan Fahed Salahat foi detido durante uma invasão a sua casa em Beit Fajjar, ao sul de Belém, na Cisjordânia ocupada, na madrugada de 19 de fevereiro deste ano.  De acordo com DCIP, o pai foi vendado e obrigado a não se mover por 10 minutos enquanto o filho adolescente era levado sem acusação. Quem são essas pessoas? 

Muin Ghassan Fahed Salahat, preso aos 14 anos por Israel ]Redes Sociais]

Muin Ghassan Fahed Salahat, preso aos 14 anos por Israel ]Redes Sociais]

O que se sabe é que Muin é que recebeu uma  ordem de prisão administrativa de quatro meses cerca de 10 dias após ser detido – e prisões administrativas significam inexistência de explicação ou julgamento e podem ser renovadas indefinidamente, a cada seis meses- até que a própria resistência à prisão se transforme em delito para embasar processos – como foi o caso de Khalida Jarrar. 

O Brasil conhece essa prática israelense, por acompanhar há anos a sina do brasileiro-palestino Islam Hamed, preso pela primeira vez por Israel aos 17 anos de idade, acusado de atirar pedras em soldados israelenses. Ele foi seguidamente encarcerado, uma das vezes pela Autoridade Palestina a pedido de Israel que o acusou de crimes durante períodos de liberdade e o mantém preso de forma intermitente até hoje. Após campanhas de parentes e ativistas de direitos humanos, o Brasil pediu a libertação e repatriação de Islam, mas Israel negou-lhe o salvo conduto para a viagem e o prendeu mais uma vez.

Familiares, amigos e ativistas no escritório da presidência da República em São Paulo cobrando das autoridades proteção ao Islam Hamed, São Paulo, 2015

Familiares, amigos e ativistas no escritório da presidência da República em São Paulo cobrando das autoridades proteção ao Islam Hamed, São Paulo, 2015 [facebook/ Campanha Libertem Islam Hamed]

Se os casos de palestinos sequestrados na juventude fossem relatados hoje, a história de Islam  indicaria agora um homem com família constituida nos intervalos das prisões, um primeiro filho, Kathib, novas prisões e o nascimento do casal de gêmeos Muhammad e Khadija, em 2021, após contrabando de espermatozoide e inseminação – uma prática da resistência palestina contra a limpeza étnica promovida por Israel. Em Gaza, porém, os canais estão cortados para que outras histórias de família de prisioneiros sejam contadas.

Estatísticas explosivas

Desde os eventos de 7 de outubro, o Clube dos Prisioneiros Palestinos perdeu o rastro de vários detentos deslocados de uma prisão a outra por Israel, entre eles Hamed, enquanto o número de presos saltou de 5.240 para os de mais de 9.500 contabilizados pela entidade.

A organização israelense B’tselem de direitos humanos divulga regularmente o total oficial de prisioneiros palestinos, usando para isso números publicados a cada três meses pelo serviço prisional e pelas Forças de Segurança de Israel. No início de 2025, havia 9.619 presos, total reduzido minimamente com as trocas de prisioneiros,  e quase 3.327 detidos sem acusação, número que hoje está em cerca de 3.400 com novas detenções, segundo os dados do Clube dos Prisioneiros.

Na passagem do 8 de março, o povo palestino rendeu homenagem à resistência das ex-prisioneiras Hana Shalabi, que se manteve em greve de fome por um mes e meio contra sua prisão administrativa e torturas; Raghad Amro, 23, que foi arrastada pelos cabelos, espancada e engaiolada junto com outras prisioneiras; a adolescente Rose Khwais, que acabou em hospital após 37 dias de interrogatório do Centro de Detenção israelense Al-Maskobiyaa;   Israa Jaabis, que teve 60% do corpo, incluindo rosto e mãos queimadas nas prisões, e outras que, libertadas na troca de prisioneiros, puderam dar testemunhos do que sofreram. As organizações palestinas fazem, através delas, um apelo contra os sequestros, torturas e prisões ilegais israelenses . 

Mas são 9.500 pessoas confinadas e violadas que ainda precisarão sair das estatísticas, ganhar um rosto e direito a compartilhar suas histórias de família, trabalho, comunidade,  e virar testemunhos da vida e resistência do povo palestino.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.