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Invasão de Rafah: Visivelmente derrotado, como Netanyahu pode clamar vitória?

A invasão a Rafah, no extremo sul de Gaza, levará a uma série de massacres — no entanto, sem qualquer êxito em reaver os reféns ou destruir o Hamas
Palestinos vasculham os escombros deixados pelos ataques diretos das forças israelenses à cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza, em 9 de maio de 2024 [Hani Alshaer/Agência Anadolu]

Houve um acordo? Houve, como afirmaram alguns oficiais da Casa Branca, uma contraproposta do Hamas? Havia duas ofertas sobre a mesa ou apenas um acordo do qual Washington refugou diante da resposta de Israel? Tais são os fatos e as especulações que algumas de minhas fontes com conhecimento de causa, no Cairo e em Doha, conseguiram me proporcionar.

A delegação do Hamas passou algum tempo na capital egípcia. Houve um documento inicial ao qual o Hamas acrescentou notas, como fez Israel. Todavia, não houve acordo algum. Em última instância, o lado palestino decidiu enfim retirar sua delegação.

Segundo as minhas fontes, a delegação do Hamas já estava no aeroporto quando o Egito trouxe à tona uma nova oferta que o grupo aceitou ponderar. A delegação viajou a Doha no domingo e então anunciou uma reunião no dia seguinte para analisar a proposta dos mediadores cataris e egípcios.

Bill Burns, diretor da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), seguiu os oficiais do Hamas até Doha. Esteve no Cairo por dois dias e então seguiu viagem. Burns havia anunciado sua chegada em Israel, mas atrasou a jornada à espera de uma resposta do grupo palestino na segunda-feira.

Houve duas pequenas emendas textuais à proposta do Egito, muito embora consideradas não essenciais à potencial assinatura de um acordo. A rede Middle East Eye teve acesso a ambas as versões.

O papel de Washington

Neste entremeio, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, mostrou-se ansioso com a presença de Burns nos países árabes e com a eventual iniciativa dos mediadores. Para o premiê, Israel deveria proceder com a invasão militar a Rafah, no extremo sul de Gaza, onde 1.5 milhão de refugiados estão ilhados, independentemente de uma troca de prisioneiros.

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A decisão do governo israelense de fechar a rede Al Jazeera no país foi ainda outro indicador da rejeição de Israel sobre o último acordo, diante da mediação do Catar. Contudo, restam dúvidas sobre o envolvimento ou mesmo a ciência de Washington sobre a proposta enviada ao Hamas pelos mediadores, assim como sua influência junto a Israel.

A versão em inglês do documento expressa com clareza que os avalistas do acordo seriam Catar, Egito, Estados Unidos e Organização das Nações Unidas (ONU).

Logo, fica a questão: Washington aprovou ou não o acordo de cessar-fogo debatido pelo Hamas na segunda-feira? Conforme uma das fontes: “Burns certamente não estava no Cairo de férias, visitando cassinos ou nadando em Doha”.

John Kirby, porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, foi evasivo: “Podemos concluir que [a resposta do Hamas] se deu como resultado ou no final das discussões contínuas das quais o diretor Burns participou”. Kirby alegou também que sua gestão estaria avaliando a resposta do Hamas, como se a oferta aprovada pelo grupo não tivesse sido proposta pelos mediadores — Catar e Egito —, e como se a presença de Burns na região fosse como mero observador.

Caminhões humanitários e veículos das Nações Unidas esperam permissão para cruzar a fronteira de Rafah, entre Gaza e Egito, após forças da ocupação israelense assumirem controle da região, em 14 de maio de 2024 [Hani Alshaer/Agência Anadolu]

Surgem divisões

O consentimento do Hamas à última versão do acordo pegou Israel de surpresa. Todos pareciam esperar uma recusa. A negativa israelense, contudo, não surpreendeu ninguém. Chocante, não obstante, foi o envolvimento de Washington no acordo rechaçado por Tel Aviv.

Após Burns transitar entre Cairo e Doha, o acordo que emergiu “não era uma tréplica”, relatou uma fonte, mas sim “um documento catari-egípcio cuja compreensão dizia que ter o apoio dos Estados Unidos, conforme a participação pessoal e presencial de Burns”.

Conforme a rede de notícias Associated Press (AP), um oficial egípcio e um diplomata ocidental corroboraram a noção de que o rascunho aceito pelo Hamas continha nada mais que “emendas menores no vocabulário”, em relação à versão promovida pela Casa Branca, que já desfrutava, em tese, da anuência de Israel. Disseram ainda que as mudanças foram feitas sob consulta com Burns, que ratificou os termos do acordo antes de reencaminhá-lo ao grupo palestino.

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A sequência de fatos parece confirmar divisões dentro da própria gestão dos Estados Unidos, ao passo que a CIA apoia um acordo rejeitado por segmentos da administração do presidente Joe Biden, que ecoam, ao menos em parte, a obstinação israelense.

Seja como for, destacaram as fontes, o Hamas não considera isso como um problema seu. “Não era a versão do cessar-fogo que eles queriam”, observou uma fonte. “Fizeram concessões para chegar lá, mas não se mostraram particularmente apreensivos com a possibilidade deste acordo cair por terra”.

Um alerta também veio à tona: “Caso a situação permaneça em aberto, o Hamas pode tomar a decisão de não participar de qualquer negociação futura até que haja um cessar-fogo. O Hamas se sente disposto a continuar a lutar, até que os israelenses percebam que também precisam de um cessar-fogo”.

A confiança do Hamas em manter o curso é uma questão que nem o gabinete de guerra em Tel Aviv nem a gestão democrata em Washington reconheceu publicamente. Caso o Hamas de fato estivesse contra as cordas, com somente um punhado de soldados em seu derradeiro bastião, por que então agir assim? Suas forças continuam a atingir alvos militares de Israel, deixando ao menos quatro soldados mortos e ferindo outros em Kerem Shalom, no último domingo.

‘Restam quatro batalhões’

Após sete meses de bombardeio que reduziu Gaza a escombros, como é que o Hamas ainda não se rendeu? O exército israelense insiste ter destruído a maior parte do contingente do Hamas, e que apenas quatro batalhões restam em Rafah.

Levantei a questão a uma fonte com conhecimento das capacidades militares do Hamas. “Onde quer que se retire o exército israelense, ressurge o Hamas: no norte, no centro, no sul”, afirmou minha fonte. “Tropas israelenses ocupam o corredor de Netzarim, mas seus postos de controle estão cada vez mais vulneráveis, razão pela qual propuseram sua eventual retirada conforme as negociações”.

Alguns especialistas militares em Israel concordam e estão preparados a mostrar dissidência. O major-general da reserva Yitzhak Barik escreveu ao Maariv: “Bibi [Netanyahu] sabe muito bem que estamos em uma situação de impasse militar … Após o exército tomar controle de 80% de Gaza — exceto Rafah —, retirou suas forças da região porque não tinha sequer contingente para substituí-las. O resultado foi que o Hamas retornou em massa às áreas deixadas pelos soldados israelenses e então retomaram seu controle sobre o território”.

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Recrutamento ou explosivos não é um problema às Brigadas al-Qassam, braço armado do grupo Hamas, considerado “terrorista” por Reino Unido e outras metrópoles coloniais. Após oposição preliminar às operações de 7 de outubro por algumas comunidades de Gaza, palestinos de todo espectro político se voltaram a apoiar seus combatentes, ao passo que se tornou evidente que a guerra israelense representa uma ameaça existencial aos palestinos como um todo.

Há agora um suprimento ilimitado de novos recrutas ao Hamas — dezenas de milhares —, após sete meses de genocídio. Tamanha onda de apoio à resistência armada supera até mesmo uma amarga história de competição política entre o Hamas, que administra Gaza, e o Fatah, parte da Autoridade Palestina, que governa de maneira semiautônoma a Cisjordânia ocupada.

Há também um suprimento infindável de explosivos. Segundo as Nações Unidas, tantas bombas foram jogadas em Gaza em apenas sete meses que deve levar 14 anos para limpar o território dos aparatos não-detonados. Em outras palavras, ao considerarmos uma taxa de erro de 15%, o material explosivo recuperado dos projéteis pode abastecer o Hamas por um longo período. Já vemos explosivos reciclados em campo. Segundo as Brigadas al-Qassam, mísseis e bombas de jatos F-16 foram reutilizados, por exemplo, em um ataque realizado na área de al-Mughraqa, no centro de Gaza.

Se os engenheiros do departamento de polícia foram capazes de recuperar cinco toneladas de explosivos não detonados de Rafah e Khan Younis dos ataques perpetrados por Israel em 2014, que duraram dois meses, qual será o volume da guerra ainda em curso, cujo volume e duração superam em muito as operações anteriores?

Forças israelenses disparam contra Rafah, no sul de Gaza, em 8 de maio de 2024 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]

Obstáculos reais

O Hamas enfrentou duas tentativas recentes de removê-lo do governo em Gaza — ameaças que levou a sério. Ambas fracassaram.

A primeira foi uma ação israelense, conduzida em janeiro, para tentar convencer líderes tribais a dividir Gaza territorialmente entre si, ao assumirem assim a gestão civil do enclave costeiro sob uma série de arranjos individuais com Israel. Contudo, muito antes de chegar às discussões do gabinete de guerra estabelecido em Tel Aviv, as tribos firmemente a rejeitaram, ao reafirmar sua lealdade ao movimento de resistência. “O estado ocupante quer encobrir seu fracasso em Gaza e criar confusão e atrito na sociedade palestina”, denunciou Akef al-Masry, comissário-geral da Autoridade Suprema das Tribos Palestinas.

Masry, ao contrário, pediu fim das divisões políticas entre Hamas e Fatah, ao observar que uma liderança nacional unificada é imprescindível “para robustecer a resistência do povo e impedir a realização dos planos da ocupação”.

A segunda tentativa foi ainda mais grave. Com apoio de Jordânia, Egito e Arábia Saudita, o plano seria implementado por Majed Faraj, chefe do aparato de inteligência da Autoridade Palestina, homem cortejado como potencial administrador pós-guerra para o enclave costeiro tanto pelo ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, quando pelo chefe da oposição, Yair Lapid. Contudo, uma ausência gritante se deu pelos Emirados Árabes Unidos, que insiste em um nome próprio: Mohammed Dahlan, barão exilado do partido Fattah.

Dezenas de agentes secretos das forças colaboracionistas da Autoridade Palestina se infiltraram em Gaza via a fronteira do Egito, disfarçados de segurança para comboios humanitários. Destes, alguns viajaram ao norte, até mesmo ao Hospital al-Shifa na Cidade de Gaza, onde, segundo os relatos, deram informações aos soldados israelenses que invadiram e destruíram a instalação médica. A maioria ficou em Rafah, a fim de estabelecer centros de comando.

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Conforme uma fonte citada pela rede Al Jazeera, dez equipes, cada qual com quatro pessoas, carregou dez caminhões para cruzar a fronteira de Rafah e entregar supostos pacotes de ajuda humanitária ao Crescente Vermelho.

A presença da Autoridade Palestina se confirmou pelo caos que cercou os comboios. Quando os palestinos famintos investiram aos caminhões, guardas de Faraj mostraram suas armas. Foram então presos e interrogados pelo próprio Hamas. Quatro dos oficiais presos foram identificados. Treinados na Jordânia, enviados por Ramallah, os conspiradores foram, como sempre, pegos de surpresa pela realidade assombrosa que toma Gaza.

Uma tremenda enxaqueca

Tudo isso deixa o Hamas confiante de que pode confrontar e sobreviver a novas tentativas das forças israelenses para varrê-lo do mapa.

“Sua confiança em manter a resistência é alta”, reiterou uma das fontes. “Israel tentou aplicar a destruição imposta como uma forma de coagi-los a se render. Contudo, saiu pela culatra. Expôs Israel como nunca antes e Israel parece agora encrencado — e não o Hamas. Seu apoio é o mais alto desde a deflagração da guerra. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também já está sentindo a pressão. Tudo isso dá ao Hamas confiança de manter a maneira como negocia”.

Não há como escapar do fato de que uma eminente batalha em Rafah será uma nova série de massacres, pelos quais a responsabilidade — conforme a lei internacional — recairá a Israel. O preço em vidas humanas será altíssimo. Caso o exército de Israel invada Rafah com fez como fez com Khan Younis, a cidade será destruída. Disseram que Khan Younis era o quartel-general do grupo Hamas; no entanto, mais de quatro meses depois, nada têm para mostrar de suas ações, salvo a completa destruição da cidade.

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Após Rafah passar pelo mesmo tratamento, Israel ainda não terá recuperado os prisioneiros de guerra, tampouco capturado ou executado os líderes do Hamas. O lado palestino parece manter a confiança nessas duas máximas.

O ponto é ecoado por Barik: “Bibi sabe que entrar em Rafah não trará nada de bom. O contrário é verdade, ao exacerbar o problema dezenas de vezes. Seremos forçados a deixar Rafah após ocupá-la e destruiremos as relações com diversos países do mundo … As consequências serão difíceis de enfrentar: Israel estará isolado política e economicamente, sob um embargo de armas que já começou. Entrar Rafah não salvará os reféns e trará apenas mais e mais vítimas”.

Após Rafah, Netanyahu terá nada menos que uma enxaqueca ainda maior do que aquela que já lhe tira o sono: como alegar vitória quando a derrota parece tão certa?

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 7 de maio de 2024 pela rede  Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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