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A ONU condena a Islamofobia e o Brasil se absteve

Protesto contra o racismo e a islamofobia em frente à sede da BBC de Londres, Reino Unido, 19 de março de 2022 [Wiktor Szymanowicz/Agência Anadolu]

Um dos debates que marca o Sistema Internacional no pós-Guerra Fria é a identificação, por parte do Ocidente, no Islã como seu outro adverso, o inimigo difuso a ser derrotado ou “pacificado”. Uma tese clássica neste sentido é a do Choque de Civilizações. O trabalho é do cientista político estadunidense Samuel P. Huntington. Originalmente em forma de artigo, publicado em 1993, a obra “evoluiu” para um libelo essencialista com a densidade de um livro.

Embora tenha alguma sofisticação, o trabalho se debruça sobre uma hipótese de “essência cultural”, indo ao encontro à época de seu lançamento (1997), com a política externa de Bill Clinton — presidente dos Estados Unidos, democrata, governando de 1993 a 2000 — e a Globalização Transnacional Capitalista. Mais tarde, com a guinada ainda mais à direita do Partido Republicano, a tese se “ressignifica”, dando alguma estrutura à “guerra cultural” baseada em mística, irracionalismo e desinformação.

Dentro do Grande Jogo Internacional, o peso da Ásia é tamanho que até suas rivalidades formativas dão base aos posicionamentos do século XXI em sua terceira década. A Islamofobia, por demais estimulada pelos Estados Unidos, ganha outra dimensão na disputa entre Índia e Paquistão. A tensão continental atingiu os fóruns adequados da Organização das Nações Unidas (ONU), conforme vemos abaixo.

A ONU contra a Islamofobia

A 78ª sessão, 62ª reunião (no turno da manhã) da Assembleia Geral das Nações Unidas, dentro 193ª assembleia apontou o tema relevante da Islamofobia. Na sede da ONU, em Nova York, no dia 15 de março de 2024 — não por acaso na data que se celebra o Dia Internacional de Combate à Islamofobia —, a maior parte dos países-membros tomou a posição de adotar a resolução que condena a violência antimuçulmana, apelando para uma ação imediata contra a intolerância religiosa. Segundo o informe da ONU, alguns Estados-membros se opuseram ao enfoque do texto numa religião, tentando a todo custo diluir a posição especial da ONU.

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O texto base trazia a proposta do Paquistão (A/78/L.48), complementada pela proposição conjunta (A/78/L.51) de Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, República Tcheca, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, Francia, Grécia, Hungria,

Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Polônia, Portugal, Romênia e Suécia, com a seguinte mensagem:

Condena a incitação à discriminação, a hostilidade ou a violência contra as pessoas por motivos de religião ou crenças, incluindo o que se diz contra muçulmanos, assim como o número crescente de ataques contra locais de culto e santuários e expressa preocupação por outros atos de intolerância religiosa, estereótipos negativos, ódio e violência.

Outro complemento (A/78/L.52) implica responsabilidades diretas para o órgão coordenador máximo da ONU implicando em:

Convite ao Secretário Geral para que designe um ponto focal das Nações Unidas, dentro das estruturas e dos recursos existentes, para combater a discriminação contra os muçulmanos.

 Infelizmente, o que era para ser um momento de raro consenso e agenda positiva da ONU se transformou em queda de braço entre as duas principais partes componentes do antigo Rajastão britânico — resultando em dois países, Índia e Paquistão, além de outros territórios.

Islamofobia e realismo regional: Índia x Paquistão

A publicação Indian Express, em texto difundido na data de 16 de março (2024), trouxe o seguinte título de uma matéria sobre a resolução da Assembleia Geral da ONU:

A Índia se abstém na Assembleia Geral sobre a resolução do Paquistão sobre a islamofobia, diz que a religiofobia contra o hinduísmo, o sikhismo também deve ser reconhecida.

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De acordo com a matéria, o Hindustão — sinônimo de Índia ou Bharat — absteve-se na Assembleia Geral da ONU referente a um projeto de resolução apresentado pelo Paquistão e copatrocinado pela China sobre a Islamofobia, afirmando que a prevalência da “religiofobia” contra o hinduísmo, o budismo, o sikhismo e outras religiões que enfrentam violência e discriminação também deve ser reconhecida, em vez de se destacar apenas uma religião. A linha oficial da Índia insistiu ainda na interpretação não-exclusiva de religiões monoteístas, ao alegar:

Os 193 membros da Assembleia Geral adotaram a resolução “Medidas para combater a Islamofobia”, apresentada pelo Paquistão na sexta-feira, com 115 nações votando a favor, nenhuma contra e 44 abstenções, incluindo Índia, Brasil, França, Alemanha, Itália, Ucrânia e Reino Unido. A representante permanente da Índia junto da embaixadora na ONU, Ruchira Kamboj, expressou a condenação de todos os atos motivados pelo antissemitismo, pela cristianofobia e pela islamofobia, mas afirmou que é crucial reconhecer que tais fobias se estendem para além das religiões abraâmicas.

O argumento de Nova Delhi e sua representação diplomática profissional buscou defender as religiões politeístas no plano discursivo; contudo, chamou atenção na prática para o tema da concorrência direta dentro do Sul da Ásia, contra o Paquistão, e mesmo em escala continental —sendo a China sua aliada econômica, mas adversária política. Como vimos acima, a força indiana é tamanha que conseguiu 44 abstenções e com países de peso no Sistema Internacional, como listado acima. Dentre as delegações que se abstiveram, estava a representação brasileira.

Índia e Brasil: uma parceria estratégica em ascensão

As informações que seguem dão conta da importância — devida e correta — que o Brasil dá para a relação estratégica e de complementaridade econômica com a Índia.

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Segundo a Agência Governo BR, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu, na tarde da segunda-feira, 25 de março, no Palácio do Planalto, o presidente do Conselho da Tata Sons, Natarajan Chandrasekaran. Também estavam presentes o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e o presidente da APEX Brasil, Jorge Viana. O grupo indiano visitou o Brasil em missão de prospecção de novos negócios.

O mandatário brasileiro ouviu de Chandrasekaran que o grupo Tata, além de já existir há 150 anos, tem em seu portfólio: a indústria automobilística — com fabricação própria ou pela aquisição da Jaguar-Land Rover; setor energético — com ênfase na produção de componentes para energia eólica e solar; setor de biocombustíveis e veículos elétricos — dentro do marco da transição energética; presença no agro; em fertilizantes, medicamentos, serviços financeiros e seguros, assim como na indústria aeroespacial. Estão previstos investimentos em novas cadeias de valor, além de se iniciar uma atuação nas áreas de baterias de lítio e semicondutores.

Em termos de presença no Brasil e perspectivas de expansão, o investimento direto é notável. Hoje são 5 mil trabalhadores no país e os planos indicam uma nova fábrica em Londrina (PR), na área de TI, com possibilidade de emprego direto para aproximadamente 2,5 mil funcionários.

O ciclo de crescimento das relações bilaterais é considerável. Em reunião realizada na Índia no ano de 2008, momento em que o fluxo de comércio era ainda menor, o desafio era chegar a US$10 bilhões, meta hoje concretizada, mas ainda pequena. As alianças do Brasil com a Índia, materializadas no G20 e na cúpula interna dos membros fundadores do Brics, indicam uma complementaridade de médio prazo, incluindo investimento estrangeiro direto (mútuo) e desenvolvimento de novos negócios, adentrando por novas cadeias de desenvolvimento — alguns dos quais de alto valor agregado. O mercado indiano, com uma população de 1,4 bilhão de pessoas, pode ser o destino majoritário de boa parte de nossas exportações nas próximas décadas.

Logo, pelos interesses do Estado brasileiro, temos a interpretação válida pela abstenção do país — criticada por este analista e esta publicação — na resolução (aprovada) em que a ONU condena a Islamofobia. É compreensível a pressão indiana, mas não é de bom grado a abstenção do Brasil. Menos mal que a medida passou na Assembleia Geral das Nações Unidas. Ainda assim, toda postura dúbia ou “neutral” da diplomacia profissional do país pode servir de combustível para os sionistas e seus aliados de extrema-direita atuando na política doméstica nacional.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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